sábado, 15 de outubro de 2011

Outro Dia De Noite


      Sinto, enfim, que começa a acabar. Que ela começa a ir embora para o seu refúgio sabe-se lá onde, num esconderijo misterioso, fantástico, etéreo e onírico, como vislumbra o meu devanear, agora solitário. Talvez como sempre. Acho que não é mais assim que ela gosta de mim, mas era como eu gostava de estar com ela, mesmo quando ela se ia embora. Ainda assim, nessa melancolia velada que me faz gritar comigo mesmo ao pé do ouvido me obrigando a regurgitar tudo nestas linhas, gosto de pensar que ela nunca se vai, nunca se foi de verdade. Sempre assim, tudo estava claro, de repente dava-se lugar a ela, que reinava insone, mesmo que os outros dormindo estivessem. Parecia, parece e sempre vai parecer velar por tudo aqui embaixo, enquanto cobre a tudo, complacente, com seu manto. Não pediu, não pede e nunca pedirá permissão para isso. Mas, por horas que parecem não acabar, soberana permanece. De repente, como que pedindo licença, outro toma o seu lugar. E aos poucos se vai, mas deixando uma marca, como um aviso, um ponto brilhante aqui, um olho que nunca se fecha, azul desvanecido do outro, de que mais tarde está de volta. Que na verdade o fim de alguma coisa sempre foi, ainda é e sempre será simplesmente o começo de alguma outra coisa, ou de tudo de novo. E ela volta. E como volta! Mas como volta, se ela na verdade nunca se vai?
(...)
      Aqui dentro. É, bem aqui dentro que ela está. Sempre esteve, sempre está e sempre estará. Por vezes me angustia, porque sei que, no fim do novo começo de tudo, ela vai se esconder, sabe-se lá porquê. Estranho que essa angústia tem se tornado constante, sem dó. E eu tento e tento me livrar da noite, fazê-la sair de mim. Mas ainda aguento, e aguento. E no fim de tudo que será novo começo, me pego a balbuciar à ela "pode apertar mais um pouco. Quando  doer eu paro". E ela ri da minha cara.



Thiago Cruz, 15 de Outubro, 2011.



sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Desse Quarto (do Mundo Amarelo)


      Aqui nesse quarto tudo me parece tão fosco, tão fora de foco. Inóspito e inócuo. As paredes riscadas, manchadas de coisas do tempo, desse tempo e de outros, tempos e coisas. Em pé, parada ali na parede fica ela, que não me vê, não me olha com olhos de enxergar, entende? Fica ali, e quem a olha sou eu. A observo com olhos que um dia hão de serem comidos. Mas por enquanto quem a devora sou eu, pensando no que ela é, no que significa pra mim e pra tudo, pra todos. Não parece significar algo, de verdade. Parece de alguma forma zombar de mim. Ela fica parada, não faz nada. E eu quero tudo, fazer e pensar e ver e falar. Escutar, é o que mais me dói, eu acho. E disso ela nunca vai saber. Tudo aqui, inclusive ela, me parece tão meu. Tão amarelo. Tão meu.
      Fico aqui imaginando até onde vai tudo que vai aqui dentro de mim. Até onde vão meus devaneios, meus inquietos pensamentos. Será que podem ir além dessas paredes que me  aprisionam? Será que ela também pode ir além? Até onde? Como? Até quando? Ela não me diz e se faz de rogada, e parece me rogar praga, pra que eu fique aprisionado a ela, também.
      Eu que sempre me quis mais do que a qualquer coisa, não posso me livrar dela. Mesmo que não a queira. Mesmo que ela não me queira. Agora sim começo a entender até onde posso ir além dessas paredes manchadas, mofadas e amarelas.
      Me levanto e vou em sua direção. Ela se vira e é como se viesse à mim, também. Fico parado, olhando. Vendo como meus pés se encaixam perfeitamente nos seus. Como nossas existências se encaixam tão perfeitamente. Ela bem que poderia fazer alguma coisa. Me dar um sinal, um sinal de que não estou só neste quarto. Um sinal de até onde podemos ir juntos. E de repente a vejo erguendo a mão até mim, num cumprimento. Aperto-lhe a mão. E percebo que quem levantou a mão fui eu mesmo. Ela não se importa. Parece não se importar. Então,  penso num modo de afasta-la. Viro as costas e começo a caminhar na direção da janela. Ela também se vira e vai se fundindo a parede. Essa parede tão riscada, tão amarela. Tão minha. Agora sei até onde posso ir. Tento um vôo da minha janela, e não mais vejo minha sombra.
      Aquele quarto, que era tão amarelo. Tão meu.




                                                                                     Thiago Cruz, 14 de Outubro, 2011.
                                                                                     E vai o Mundo Amarelo de Marina...

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Cândido (Mundo Amarelo 2)


      É só olhar pra baixo, agora eu sei. Percebo tudo mais bonito daqui. Mais bonito, sim, porque percebo tudo do meu jeito. É um jeito que ninguém consegue ver, ou não quer enxergar, não sei. Ainda assim continuo sempre na mesma dúvida, se deixei tudo desse jeito lá em baixo, ou se sempre fora assim mesmo, e ainda assim ninguém se prestou a ve-lo como é. Quanta tolice. Talvez, também, por isso eu o veja assim. Talvez por isso eu esteja aqui em cima.
      Sei que pode parecer bem estranho pra você me ver daí de baixo. Pode parecer estranho esse meu jeito de olhar com certo desdém, ou meu modo de dizer o que penso sem palavras, ou que eu tenha de voar pra olhar pra você. Mas não é, não. Preciso subir. Preciso preparar minha grande cesta com provisões, inflar essa grande lona e me dispôr ao sabor do vento. É que não consigo olhar em seus olhos sem lhe achar estranho, ou me aborrecer com seu jeito. Te parece estranho isso, eu sei, mas se ponha no meu lugar. Não consegue, não é mesmo? Então, entende agora porquê não consigo te olhar nos olhos? E vem você achar estranho o que eu faço, ou até mesmo não achar nada. Mas estranho mesmo é não perceber que eu to aqui em cima, ou não ouvir o que eu tenho a desenhar ou que só voando pra te olhar é que eu posso ter algo a dizer. Sabe? Não sabe? Tá vendo? Por isso tenho que estar aqui.
      Olha pra você... parece uma formiguinha daqui de cima. Não. Acho que até uma formiga ainda é mais compreensível. Pelo menos parecem ter algum propósito. Diferente da maioria aí embaixo. Das pessoas, não das formigas. Mesmo assim me parece uma vida tão microscópica, na pequenez do sentido da palavra. Um vida mínima, minúscula de propósitos, caráter, de fazeres e aconteceres, até mesmo de sonhos, desejos. E que desejos, se não simples vaidades? A cada minuto mais vou firmando aqui em cima meu próprio chão. Aqui mesmo, nas nuvens, no etéreo da atmosfera fria e sem consistência. Aqui mesmo, onde vou me tornando etérea com as nuvens, onde a atmosfera vai ficando mais quente e consistente que aí, embaixo. Com mais substância, certamente. Tanta substância que vai me aumentando a distância.Gostei disso. Usarei essa frase mais tarde, de alguma forma.
      Fico pensando - pena que você parece não poder fazer o mesmo... Pena. - em como até o céu em que me encontro agora - meu céu! -, até ele, me parecia amarelo, também. Um mundo assim... Assim assado, sabe? Meio hepatite, meio meia boca, meio nada a ver. Me perguntava por quê dele, qual o sentido de uma coisa tão intocável e imutável. Afinal, tudo muda, certo? Ou deveria mudar, evoluir e crescer, sei lá. Alguém já disse isso, e foi alguém que todos consideram gênio, então não venha me dizer que tô falando bobagem. Qual é mesmo o nome dele...? Tem tanto tempo que ouvi isso - talvez porque ninguém aposte ou se esforce tanto mais pra mudar, crescer e evoluir, não necessariamente nessa mesma ordem - que não me lembro. Ah, deixa pra lá. Então, como eu ia dizendo, o céu me parecia o mesmo de tudo que há aí embaixo, quase sem graça nenhuma. Até que resolvi subir pra ver o que se passava. E não passava nada! Eu só precisava mesmo subir pra saber que aqui era meu lugar! Era aqui que eu deveria estar pra que a inspiração aparecesse, pra que tudo parecesse a mesma coisa aí embaixo. E não é que parece? Eu estive dos dois lados, não pretendo sair de onde estou, e sei que sim, continua tudo a mesma coisa.
      Olha, é como disse no início. É só olhar daqui de cima aí pra baixo. Tudo parecerá nada e nada parecerá tudo. Tudo fará sentido e fará tudo perder o sentido. Aqui em cima tudo poderá ser teu também. Inclusive a vontade louca e a convicção de não voltar. Se olhar daqui de cima - ainda tem lugar no meu balão fantástico, talvez sempre tenha - o mundo deixará de ser amarelo. Mas não é simplesmente subir. É só você querer. Seja menos você, e torne-se mais cândido.
      Me lembrei! Antoine Lavoisier!

                                              


                                                                     Thiago Cruz, 26 de Setembro, 2011.
                                                      E o maravilhoso Mundo Amarelo de Marina Aniram
                                                        (marinaaniramarte@blogspot.com) vai me inspirando.


quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Sonhos de Mentira

Quando os olhos só tecem mentiras
Sem vergonha e sem tremer

E a verdade é um poço sem fundo
Que só serve de distração

Se pensar, não há nada de novo
Não há nada o que temer

Acredite nas velhas estórias
Saia dessa arapuca, irmão.


São os mesmos seus velhos fantasmas
E são outras as suas leis
De seus livros em capas imundas
Com palavras de maldição


E a poeira te cega os olhos
E te calas por tudo que vês

Pela boca se morre é calado
Abre logo essa cuca, irmão.

Thiago Cruz e A Ruga. Música.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Acrílico Sobre Sonhos (Mundo Amarelo)

Acordei e olhei pela janela, lá fora, onde está o resto do mundo. Sim, o resto. Porque o mundo todo está aqui, no meu mundo, aqui dentro. Meu mundo estranho e lindo está todo comigo, e quer sair. Quer sair e ser um mundo todo, pra todo mundo, que já não cabe mais em mim. E foi assim que acordei, mesmo que ainda esteja dormindo.
            Com os olhos ainda pesados fico pensando se os abro ou não. Será que me assustarei quando abrir a janela e olhar as coisas e ver que as coisas continuam as mesmas? Será mesmo que quero acordar? A luminescência do universo que tenho aqui dentro da minha penumbra me conforta, mesmo que eu não saiba, na verdade, do desconforto que se faz além dele. Não agora. Que acabei de acordar, mesmo que ainda esteja dormindo. Ou será que o resto do mundo acordou cedo demais? Podem dizer o que quiserem, achar o que acharem, mas eu prefiro acordar antes tarde a nunca. Afinal, se me desperta a razão, nasce-me a angústia. E, quer saber? Angustia-me a ideia de sair da cama e enxergar um mundo igual a tudo que sempre foi. Ainda me decidindo se abro ou não os olhos.



            Se bem que pensando bem, talvez eles já estivessem abertos antes de eu fecha-los. Talvez eu não quisesse ver isso porque era isso que o resto do mundo não queria que eu visse. E dessa forma, assim com esse impedimento mundano, eu não me via. Porque isso sou eu, muito mais eu do que eu penso, eu acho. E o resto é muito mais “acho” do que eu penso ter certeza.  E disso, eu duvido que você saiba. Duvido que compreenda essas cores, as nuances, os degradês, os ton sur ton. Mas, pensa só como parece engraçado. Você não faz a menor ideia do que eu estou falando. Mas eu, só de olhar, posso lhe decifrar em alguns relances, e posso conseguir isso sem esboço algum. Eu queria mesmo é te envolver, te enrodilhar em meu mundo pastel, te decifrar cada espaço com meu passo-a-passo, te provar por a mais b cada sabor dessas misturas que te rodeiam, que talvez você nem as saiba.  Tudo em alguns passes de mágica.
             Muito mais do que abrir os olhos, eu queria abrir, agora, meus potes de tinta mágica – eu tenho uma caixa cheia delas, não sabia? – e pincelar tudo que encontrasse pela frente, e talvez também tudo que ficou pra trás. Meu pincel seria minha vara de condão, e meu estro minhas palavras mágicas, meus abracadabras! O resto do mundo minha tela, e o universo, esse gigante gentil, meu ateliê. Minha exposição? Não precisa procurar muito. Não está nos cadernos de cultura dos jornais, nem nas galerias das grandes empresas, nem na beneficência dos empresários ou nas leis de incentivo que se fazem por aí. É só abrir você também a janela. Então verá o meu Mundo Amarelo.


                              Baseado em e dedicado ao Mundo Amarelo de Marina Aniram.
                                                                   Thiago Cruz, 05 de Setembro, 2011.
                                                                     Desenho e foto por Marina Aniram.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Junho

Primeiro da série "Eu, Lobo"

Caem por aqui todas as folhas. Secas, semi secas, quebradiças... Mas, curiosamente, nenhuma folha fresca caiu. Nenhuma daquelas que olhamos e sabemos que caíram por força da natureza, que cairiam com o tempo, e seriam esquecidas por esse tempo afora, jogadas ao vento, na indiferença de existir, subsistindo. Nenhuma folha fresca caiu. Foram, pois, arrancadas.
            Me envolve bastante esse fim de Junho, frio e seco, ventoso, vão e arrogante. A brisa de Abril que me acariciava, de repente, torna-se ventania que me talha a carne. Que me dói e me faz tremer. As flores que antes me permitiam canta-las deram lugar a simples talos secos e sem graça. As árvores sujeitam-se ao sabor, que não é mais tão agradável, dessas rajadas de vento que impunemente as golpeiam. As ferem. E me ferem também.
            Canto a noite junto a Lua de Junho, uivo a ela, praticamente. E meu uivo é meu lamento. Neste caso, posso dizer que choro. Uma pena ela não ouvir. Gostaria que sentisse a dor que sinto, pois como é dolorido chorar sozinho. Um lobo solitário, quase um cão sem dono ladrando por aí, uivando meu lamento aos quatro ventos, tão cáusticos apunhalando minha voz, que respondo doído, que ele pode me levar, que o brilho dessa Lua poderia me lavar, que de nada adianta.
            Louvo a noite dessa forma, e ela não corresponde aos meus louvores, meus uivos, meu lamento. Mas é esse cheiro da noite que me faz bem. Esse odor que vem no véu desse vento inane. Não necessito resposta direta, resposta falada. Sempre fui homem de palavras, de falar e de falar muito. Mas o meu aguardo, quase sempre longo demais para quase tudo, me ajudou a tornar-me minudente ao expor meus desejos, mas reticente em relação ao lugar onde me levaria essa exposição. Portanto, hoje, acho que não necessito resposta, porque sei que me escuta quando sonho, assim como te sinto, me cortando, me talhando a pele, me fazendo sangrar, ao sentir esse vento indolente. E me torno, também, quase indolente junto dele, que de certa forma me fortalece.
            Eu, lobo. Solitário na minha varanda, que dá pra Lua, que dá vista pra rua, que te expõe nua na minha mente, na minha alma talhada, dilapidada pela indiferença, marcada a ferro, derretida a fogo, maculada por tanto... Tanto. E meu lamento se faz mais forte a cada minuto que passo longe de você, que inevitavelmente, incorrigivelmente torno-me esse solitário das pradarias - e mudo de lobo pra coiote sem nem perceber, percebe? Choro e tento me juntar a outros tantos coiotes de estepes doloridas, ao menos em meu devanear solitário de dolor crônico. Não encontro tantos quando deveria. Logo se voltam para seus próprios caminhos, como devem mesmo fazer. Como eu deveria mesmo fazer. Virar as costas, tornar a fronte e, como refrão doído dos idos de ’40, continuar lamentando. Uivando à Lua.
            Continuo aqui, na planície da minha solidão, e só posso esperar o próximo Abril chegar, mesmo que ainda seja Junho. Esse frio Junho de minh’alma.



                                                          Thiago Cruz, 29.06.2011

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Sonho de Velha Canção

          Acordei com um gosto de não sei o quê na boca. Não sei. Parecia algo que não vivi ainda. Aquele gosto de vontade, de querer o infinito. Gosto de noite longa, gosto de acordar gostoso. Um gosto de saudade, que te gosto muito. Gosto de saudade.
          Me salta aos olhos um dia inteiro, de tudo que quero sentir. De tudo que penso de tudo. E tudo que se faz pensamento é só por mais um dia. Amanhã serão outros, será outro dia. Da minha boca uma canção de velhos tempos, de estrofes envelhecidas, amareladas, com aquele cheiro de música velha, que se escreve em letras de rodapé. Vou cantarolando e, sem perceber, arrisco passinhos de dança sobre meus pés, pequenos em relação a esse mundo, grande demais para os meus pés, pequeno demais para a minha vontade. Vontade de sair dançando, mesmo sem par.
          Na minha cabeça, enquanto danço por aí, me imagino personagem d’algum livro bom, daqueles que se tem na cabeceira, ou esquecido em alguma caixa velha. Daqueles com cheiro bom de livro. Enquanto componho meu romance, sinto-me dançando sobre as linhas que escrevo no ar. Cada sílaba é um passinho. Cada palavra um giro no ar. A cada estrofe termino com meu ponto final, um passo firme, e espero um segundo ou dois para recomeçar.
          Olha aí os personagens que compõem minha história. A menininha que passa de mãos dadas com a mãe, me olhando, é aquela prima que vem visitar nos fins de semana, e me puxa pelo braço pra irmos brincar no balanço. A moça parada no ponto de ônibus, enfastiada pela bagunça que a cerca é a tia gorda que me repreende pelo meu jeito libertário, avesso às tradições da família. O cãozinho vira-latas que trança pelas pernas da multidão é meu fiel companheiro, naqueles momentos em que me tranco em meu mundo, meu quarto, de mal com o mundo todo. Um a um os personagens passantes vão fazendo tudo na minha cabeça. Só não consigo encontra-la. Aquela que seria meu amor platônico, meu romance impossível, a bela dos meus olhos. Ela não existe. É um romance impossível.
          Deixo de lado meu modesto roteiro, por hora. A lembrança dessa moça que eu nem sei quem seria me absorve, e me pego cantarolando minha saudade. E a saudade me encanta. Fecho os olhos por um instante e me enxergo pé ante pé sobre a faixa de pedestres, como nas teclas de um piano, e nele toco e cantarolo Smile, como um Chaplin de cabelos encaracolados e calça jeans surrada. Ah, como eu queria caminhar sobre teclas de piano. Ah, como eu queria tocar música na faixa de pedestre.
          Apenas acordei nesta manhã, como em todas as outras, e tudo se fez. E tudo ainda se faz. Na boca um gosto de saudade. Nos pés um passo de dança. Na cabeça os caracóis num romance antigo. E a vontade de uma velha canção no ouvido. Na boca, um gosto de não sei o quê lá.



                                                                         Thiago Cruz, 05 de Julho, 2011.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Saudade é saudade

Saudade é como música
Daquelas que não se entende
Mas se sente como corte
De faca cega, amolada pelo tempo

Saudade é samba no salão
Sozinho e sem confete
É afinar o violão
Sem ter o que tocar

Saudade é blues inacabado
Que não se sabe como começar
É o canto choro de um fado
Que dói fundo, além-mar

Saudade é livro de páginas em branco
Daqueles que se lê sem pudor
Daqueles que nos dão imensa fome
E se escreve em cada página
O seu nome.

Dedicado

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

De Mestre

Sobramos nós dois nesta mesa. Todos já se foram ou não fazem mais diferença. Somente nós dois, e o jogo continua. Sem cartas marcadas, sem truques, apesar de eu ter percebido um certo poker face de sua parte. E isso eu não sei fazer.
            Jogada após jogada vamos nos conhecendo como queríamos, sabendo onde fazer a melhor jogada, quando blefar, quando mostrar a mão, boa pra praticar Quiromancia, me disseram. Um tanto embaralhado, tudo isso, e vamos tentando desembaralhar tudo, com a maior prudência, mas sem a menor compaixão. Afinal, o jogo já está chegando ao fim, e ninguém parece se importar. Nem eu, nem você. Ou eu posso estar completamente enganado. Veremos. Mais uma rodada, três cartas pra cada um. Uísque sem gelo pra mim, cerveja pra você.
            Olho nos teus olhos e não consigo decifrar nem meio pensamento, nem um traço de vacilação. Eu, no entanto, jogo como se tivesse todas as cartas viradas. Primeiro eu, abro a rodada com uma carta grande. Minha mão está boa, e estou confiante. Logo perco meu sorrisinho otimista, porque você mata minha jogada com uma carta inesperada. E que desbanca a minha. Te olho nos olhos e nada vejo, não decifro um centímetro pra dentro de você. “Foi uma bela jogada”, pareço ouvi-la dizer. Mas não diz nada.
            A próxima jogada é minha novamente. Ainda me garanto duas boas jogadas com o que tenho na mão, mas a próxima já é quase uma jogada desesperada. Você me sacou e simplesmente me deixa pensar que ganhei, que minha jogada foi de mestre. E pra falar a verdade noto uma ponta de confusão em sua resposta. Mais um Jack Daniel’s duplo, que essa merece. Há-há! Agora percebo o que eu talvez devesse ter feito de início. Pode ser que ainda dê tempo de reverter todo o meu nervosismo. Quase nem penso na próxima jogada, de tão confiante. Mas, num instante, você esfria novamente, e nada em seu olhar me diz o que procuro. Nem me diz nada.
            Já não há muito que fazer, nada que seja surpreendente. Eu jogo, você joga e pronto. Quem ganhar ganhou. Quem perder não vai só perder, mas vai remoer, sofrendo essa derrota talvez pelo resto da vida, ou enquanto durar minha dose e eu tiver que ficar tentando decifrar o que há por trás desses olhinhos que nada mais me dizem. Dou minha última cartada e quando cai sobre a mesa quase posso sentir o peso do mundo caindo sobre ela. É como se uma tonelada de culpa e dúvida recaísse sobre essa jogada final. Todos os movimentos agora parecem correr em câmera lenta. Você aguarda. Paciente, olha pra minha carta sobre a plataforma, e me olha fundo nos olhos, decifra minha alma, decifra tudo. Só eu não decifro nada. Olha-me como se me desse um último beijo de misericórdia, como se afagasse meus cabelos dizendo “tolinho... não é assim tão fácil”. Lança a última carta e é como se jogasse na minha cara, e chega a doer. Você me vence, quase pelo cansaço, mais pelo meu desespero. Se tivesse feito certas jogadas antes talvez as coisas fossem diferentes. Resigno-me e termino meu uísque, que me amarga a alma como nunca antes. Ficamos os dois sem saber o que dizer. Apesar da frieza em sua face, sei que sente minha derrota como se fosse sua. Sobramos só nós dois aqui, pra essa rodada, e alguém tinha que sair de mãos vazias. Mas aí... Você se surpreende quando peço outra rodada de uísque. Você ainda não sabe, nem eu, pra falar a verdade. Mas posso ter alguma carta na manga. Pode ser, pode ser.
            Xeque!



Thiago Cruz, 11 de Julho, 2011

Momento de Esquecer...

Talvez seja
O momento de esquecer
Da vontade de lhe ter;
O momento de acabar
Com a vontade de lhe beijar;
O momento de sair
Da tua vida, sem despedir;

A hora certa de olhar pra mim
E entender que chegamos ao fim.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Anos-Luz - Agosto

Da série "Eu, Lobo"


Já passa da hora. E eu ainda aqui, de ouvidos atentos, com os sentidos aguçados, mas sem saber direito o porquê, como animal à espreita de nada, sem ter presa, sem ter pressa. Faz calor e caminhar por essas ruas tem sido cansativo, e cada dia mais cansativo. É como subir uma avenida e ficar sem saber em qual das ruas laterais entrar. Exatamente assim.

                Cansado do jeito como a vida tem sido, cansado das pedras que ela tem colocado em meus caminhos, cansado de não ter nada mais a fazer além de me preocupar. Parece que não adianta chorar quando não se tem alguém por perto. Não adianta derramar lágrimas à ninguém, deixando-as rolar ao vento. Portanto choro à Lua. Daqui de cima, do alto dessa rua, posso vê-la surgindo por trás da selva de pedra de minha vida. Por trás dos morros que compõem a paisagem mais inóspita deste, agora, nada belo horizonte. Mas ela o refaz de uma forma simples e terrificante, nos colocando quase no limbo, entre nossa pequena e quase falida existência e sua espetacular e, a cada dia mais em expansão, grandeza. Viro-me para olhar essa imagem como se fosse a última da minha vida. Como se dali pra frente nada mais eu visse e essa seria a imagem gravada na minha mente, na, então daí, escuridão da minha retina.

                A partir desse momento é como se nada mais ao meu redor se movesse, como se no minuto em que eu paro, o universo – meu pequeno universo – também parasse. Como se nada mais fosse tão importante quanto esse momento: a Lua e eu. Meu choro velado e seu acalentar distante. Minha grande pequenez e sua pequena grandiosidade. Sinto que existe uma aura de tensão entre nós, nesse espaço que nos separa, nesses anos-luz que insistem em passar, luz após ano. O tempo que fico aqui, observando essa cena Homeresca – o que diria Homero? – nem chega a um minuto, quanto mais a ano-luz qualquer. Mas tudo que se passa vai num ritmo de um fado sôfrego e fatigado. Porque tudo parou, e vai parando e parando no meu momento. Tudo isso faz parte de um estranho quadro Salvadoresco – o que diria Dali? – onde a malemolência dos minutos percorre meu rosto empapada em sudorese.

                Sinto no topo de uma colina desértica, arenosa e minha, só minha. Sentado com os olhos lânguidos, a observa-la, vendo o pontear das primeiras estrelas, anunciando a noite que, pelo jeito, será longa. Sinto como se algo quisesse se desprender do fundo da minha garganta, vindo do âmago de minha alma, e me sobe pela espinha e me arrepia os pelos e põe em riste minhas orelhas e me traz um torpor como nunca antes havia sentido e é como se eu fosse uivar com todas as minhas forças expurgando todos os meus lamentos em um único abrir de boca e quando chega, finalmente...

                Lembro de que a vida deve voltar a correr em seu curso, seu tempo normal. Um último olhar, num último choroso adeus, e volto a caminhar de volta pra casa.





                                                                                                                        Thiago Cruz, 19 de Agosto, 2011.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Galhos Secos

Da série “Velho Velho Oeste”



No alto desta colina aguardo meu destino, que será o que o destino me reservar, incerto e impreciso, longe como minhas lembranças, minha saudade por ela. A eleita de minh’alma, que cruzou o caminho do meu coração e me fez bandido, mesmo tendo sido ela a roubar meu juízo. Ah, minha bela donzela. Fizestes-me calvário onde antes era verde colina. E aqui, no alto dela, aguardo meu destino.

           Atravessei todo o velho deserto desse oeste cáustico, infindo, a procura de não sei o quê, mas sentia que encontraria. O que quer que fosse. Tendo as estrelas como teto e as pedras como travesseiros, quase sem perceber já estava entrando naquele pequeno vilarejo, tão vazio de tudo que parecia uma cidade fantasma. Mais uma, apenas mais uma. Queria somente um lugar pra recostar a cabeça e descansar o espírito, um copo de qualquer coisa forte e um prato de coisa qualquer. Mas, como você sabe amigo, cidades fantasmas, vilarejos assim tão isolados, não são lá tão amigáveis com o que chamam de forasteiros. E comigo não foi diferente. Será sempre o mesmo e velho oeste. Mas disso você já sabe.



            Alguns níqueis ainda me restavam nos bolsos, afinal eu não teria muito com o que gastar pelo deserto. Restava saber se serviriam para alguma coisa por ali, onde havia acabado de chegar. Entrei no primeiro saloon que vi, e foram tantos os olhares e tão pesados, tão ameaçadores, que só tive coragem para dar dois passos atrás, e voltar por onde havia entrado. Fui caminhando pelas sombras das calçadas daquela cidade, silenciosamente, que além de refrescarem o calor escaldante do sol do meio-dia me mantinham quase incógnito.  Cautelosamente adentrei outra taberna e, por ali, o ar ameaçador estava nem um pouco mais leve, o que me fez ficar assim mesmo, pois já estava farto de procurar lugar amigável. Num canto alguns homens jogavam cartas com caras de raros amigos. Alguns bebedores solitários pelo balcão – estranho como esse ar do oeste faz os homens solitários – e o taberneiro. Pelo menos ele parecia um pouco mais camarada. Atravessei todo o saloon fingindo segurança, como se caminhasse por cima de todo aquele ar pesado. Nada precisei dizer, nem pedir.

            - Você parece com sede, garoto - e me estendeu uma caneca cheia, da melhor cerveja que eu havia tomado nos últimos dias, dias em que estive no deserto.

            - Sim, eu pareço.

            Quase de um gole só terminei a caneca e me senti novo. Ele me serviu outra, antes mesmo que eu terminasse a primeira. Talvez se ele soubesse de quanto eu dispunha nos bolsos não fosse assim, tão gentil. Assim como, se eu soubesse o que me esperava naquele lugar, talvez nunca tivesse sequer atravessado o chão quente do deserto, procurando não sei o quê. O que quer que fosse.






            - Não por essas bandas, seu filho de uma que ronca e fuça!

            Ouviu-se um brado pelo salão, seguido de alguns outros, ainda menos gentis. Uma confusão repentina na mesa dos nobres senhores que jogavam cartas. Um não-sei-o-quê Cartas na Manga resolveu provar o porquê de seu nome, mas não contava com a astúcia de um tal Abe Olhos Vivos, ou algo do tipo. E quando já estavam ali, prontos, com as mãos em seus coldres, um estrondo, bem ao meu lado, quase me deixa surdo. Era o taberneiro – qual era mesmo o nome dele? – colocando ordem em sua casa. Retirou de uma gaveta debaixo do balcão a maior escopeta que eu já tinha visto!

            - Pois eu é que o digo, seus cães sarnentos! Não por aqui, não no meu salão! Bebam e dancem, joguem e cantem, mas com respeito! Quem se fizer em contrário vai se ver com a minha Lucy, aqui!

            Percebi que o homem ao meu lado ficou ali, impassível diante do ocorrido. Ou era surdo, ou era o mais destemido dos que eu já havia visto.

            - Pois bem, - bradou novamente o taberneiro - nada aconteceu. Voltem a beber, que a minha cerveja não se transforma em dinheiro sozinha!

            Tudo voltou ao normal por ali, o que quer que normal queira dizer nesta cidade. Continuei a beber minha cerveja, com mais cuidado agora, pois não sabia se alguma atitude poderia ser interpretada diferente. E porque minha vida havia, então, mudado completamente, pouco antes daquilo tudo. Isso é ser um estranho em terra estranha, companheiro. Deixar de ser você mesmo pela aprovação dos outros. Ou pode morrer de alguma coisa, se quiser. De fome ou de amor.

           

            Pouco depois de começar a beber minha segunda caneca naquele balcão sujo, de repente tudo se iluminou. E eu nem sabia ainda como toda aquela luminescência me levaria às trevas em apenas alguns minutos. Levaria-me ao abismo do malfadado amor, abismo que vislumbro agora, de cima dessa colina. Mary Ann. Linda como o florescer da flor de cactos do deserto em noite de lua cheia. Os cabelos dourados, maravilhosamente cuidados, como a crina do mais nobre cavalo. Digo... Égua. Digo... É melhor não dizer nada, e me calar diante de meu destino, incerto, por certo, e em tributo a tão notável beleza.

            Eu nunca havia visto imagem tão bela, tão lindamente esculpida por Deus. Entrou naquele salão e foi como se a noite se fizesse dia. Como se, ao invés de acordar, eu estivesse entrando num sonho, o mais belo dos sonhos. Talvez pela minha fome, que poderia estar me trazendo delírios, talvez por ter estado tanto tempo isolado no cruel deserto do oeste, mas estava diante da eleita de minh’alma, que cruzou o caminho do meu coração e o fez parar.

            O homem ao meu lado, destemido cavalheiro ao que me pareceu, de pronto ordenou ao taberneiro.

            - Uma dose do que a moça for tomar, por minha conta.

            E também de pronto o velho do saloon o alertou sobre o comprometimento da moça, com um tal Jack Fulano de Tal. Não direi que não ouvi a informação – que fez, rapidamente, com que o estranho retirasse a gentileza. Muito destemido, mesmo. Mas foi como se eu não quisesse escutar, tão emaranhado estava àquele raio de sol. Ofereci eu mesmo algo para ela beber, sem nem me preocupar com o que tinha nos bolsos. O velho homem se fez de rogado e lhe entregou um copo com alguma bebida dentro, que nem me interessou saber o que era. De um canto, ela me sorriu de canto, me acenou levemente com a cabeça e suavemente sorveu o que tinha no copo. Parecia esperar alguém, e me vi tentado a acompanha-la em sua mesa.

            - Você não sabe onde está se metendo, rapaz – me disse o velho. Essa beleza não é pro seu bico.

            - Pois é para o bico de quem, senhor?

            - Não se meta onde não é chamado, garoto. Não importa de quem eu esteja falando. Estamos entendidos?

            - Pois lhe digo que não sofre o homem que tenta.

            Quisera eu acreditar realmente nestas palavras. Quisera eu fugir do sofrimento que me aguarda por ter tentado. Mas a cegueira de meu deslumbramento agiu por mim. E estou cá com meu destino, aguardando o fechar das cortinas de minha vida.



            O que se seguiu após essa impensada atitude de minha parte não vem ao caso, senão seu desfecho. Em poucos minutos corria pelo salão um burburinho que dizia, segundo pude ouvir, que Jack Quatro Olhos estava chegando a galope para tirar a limpo aquela história de que sua bela Mary Ann estava sendo importunada por algum forasteiro que dizia ser o mais valente de todo o oeste, desafiando-o a lutar pelo amor da beldade em duelo de armas, ainda à luz daquele dia. Nesse ínterim ocorreu o incidente do jogo de cartas, o que também não vem mais ao caso. Não sei se você sabe, mas um forasteiro nesse tipo de cidade nada mais é que um bandido botas sujas em potencial, mesmo que tudo que digam sobre você seja plena mentira. E, sim... A partir daquele momento toda a cidade estaria nos meus calcanhares, pagando pra ver meu último suspiro. Por sorte, o velho taberneiro me deu cobertura, me fazendo sair pelos fundos de seu honorável saloon. Por azar, eu não fazia ideia de para onde ir. Nem tinha condições de ir a lugar nenhum. Como corisco, atravessei um campo seco de vida e mais que depressa subi a colina que me pareceu mais distante da confusão. Nem notei que, diante do meu cansaço, aquela era, na verdade, a mais próxima do meu martírio.



            Quando já estava no pé da árvore mais seca no topo desta colina, percebi que ainda levava a caneca com algum resquício de cerveja escura. O meu último gole talvez. Nem sei de onde consegui tempo para este relato, pois já ouço vozes e o trotar de cavalos cada vez mais próximo. Lanço um último olhar sobre aquela pequena cidade, como numa benção de adeus, como um brinde ao amor encontrado, já perdido. Ali ficou meu coração. Ali, um pedaço de minha alma. Ali, o último suspiro de maldita paixão. Um último gole. Um brinde ao amor, um gole ao adeus.


                                                                                   Thiago Cruz, 02 de Agosto, 2011





                                                                                           

Olá, adeus.

Nasci numa noite agradável de Abril. Outono, daqueles que pensamos que nunca vai acabar. Foi uma noite perigosa, um parto complicado. Parece que a vida já estava me alertando sobre como seriam meus dias por aqui, e dificultou todo o início. Será que será complicado assim no final? Só posso esperar pra ver. Pois nasci numa noite muito complicada de Abril. Há vinte e sete anos.

            O universo sempre conspirou meio a favor, meio contra minha vida. Difícil entender. Nada na minha vida foi tão fácil quanto poderia ser. A não ser a capacidade de me relacionar com as artes. Desde cedo sempre gostei de ler, e os quadrinhos eram meus preferidos. Comecei a desenhar naturalmente, quase sem querer, quando um belo dia, aos três anos de idade, me vi rabiscando o que parecia ser um cavalo em alguma folha de papel. Não planejei, como “sabe, acho que vou aprender a desenhar”. Fui me aprimorando ao longo dos anos, me tornando mais detalhista – exatamente no limite que deveria ser –, e me sentia o máximo quando me pediam, quase imploravam pra que eu desenhasse alguma coisa, fosse pra ajudar em algum trabalho, fosse simplesmente pra verem um “artista em ação”. Nem precisariam implorar. Eu só queria alguma atenção.

            E foi assim até, sei lá, meus 15 anos, momento em que comecei a prestar mais atenção à música. Sempre fui cercado por ela, desde que nasci. Os vinis do meu pai também foram velhos companheiros na minha infância, e eu me orgulhava muito deles, porque sabia que nenhum dos meus amigos tinha discos tão legais quanto os do meu pai. Dylan, Chico, Zeppelin, Caetano, Belchior, Janis, Elis... Era tanta coisa legal e rara, que a música sempre foi algo muito presente em mim. Mas nunca havia prestado tanta atenção, até que meu primo me apresentou alguns sons que eu não fazia muita questão de procurar, porque já me orgulhava o bastante do que eu conhecia. E conheci, então, meu primeiro companheiro musical da turma dos vinte e sete. Morrison. Fiquei chocado com aquilo! Eu não fazia ideia de onde eu estava que até então não havia conhecido os Doors. Mas nada me impressionou mais do que a biografia do cara – olha a literatura aí de novo. Além de tudo que conheci sobre o gênio, o que mais me atraiu foi o fato de ter morrido aos vinte e sete anos. Não sabia porquê, só me atraiu. E era só o começo.

            Obviamente eu já conhecia Janis Joplin, mas não sabia de toda a mística envolvendo-a junto ao Morrison. A voz dela sempre me atraiu de uma forma mágica. Eu não sabia explicar o que era, e isso acontecia também com o Jim. Eu não gostava, necessariamente, não achava as vozes deles bonitas, mas era mágico. Prendia-me e eu simplesmente não conseguia parar de ouvir. Depois de um tempo, fiquei sabendo da história. Janis Joplin, 1970, vinte e sete anos, descansa em paz. Não cheguei a criar uma teoria da conspiração na minha cabeça, nem lembro se na hora liguei uma coisa com a outra, mas sei que, da mesma forma que antes, me chamou atenção. Talvez pelo fato de terem morrido tão jovens, e fazerem um som que remetia a um passado que eu não tinha vivido. Mas foi quando conheci outro cara, mais recente, que veio tudo à tona.


            Eu estava meio passado com todo o som que conhecia. A MPB não me atraía tanto mais, havia se tornado entediante, e eu precisava gritar. Claro. Eu estava com dezesseis anos e havia começado a aprender a tocar, a querer montar uma banda. E aquele som me arrebatou! Toda aquela sujeira sonora, mas melódica ao mesmo tempo, aquela voz que parecia que o mundo estava acabando e era o último grito da vida... Foi isso o que o Nirvana me despertou. Eu tinha vontade de sair correndo e gritando e tocando guitarra e compondo e sendo Kurt Cobain. Eu quis beber e ficar chapado, e chutar lixeiras e xingar o presidente e me tornar grosseiro e usar heroína. Mas no fundo eu sabia que não era isso. Que isso não definia aquilo tudo. E nunca fiz essas coisas. A não ser ficar chapado. Como sempre faço, e como não posso deixar de fazer, fui procurar livros, revistas, qualquer coisa que falasse deles. E fiquei chocado. Desta vez sim. Kurt Cobain, desde 1994, quando tinha vinte e sete anos de idade, descansa em paz. Mas ele me chocou mais, muito mais. A forma como morreu, sendo suicídio ou assassinato. Brutal. Ele foi, literalmente, retirado da vida aos vinte e sete. E acho isso injusto. Ainda mais pelo trabalho feito no disco acústico. Ouvir todas aquelas versões fantásticas de músicas já antes gravadas, num formato que me atraía desde pequeno... Mas uma música me abriu os olhos. E se tornou canção obrigatória nas rodas de amigos, e passei a executa-la tão bem que eu era impelido a toca-la, mesmo que não quisesse. Where Did You Sleep Last Night me arrebatou! Eu estava cansado de gritaria, de barulho demais, de distorção demais, e quando vim a saber que aquela era uma versão de um velho blues, eu quis saber o que era aquilo! Que tal de blues era aquele. E me viciei.


            Tudo que era relacionado ao blues eu queria ver, queria ler, queria ouvir, queria comprar, queria saber. Aquilo se tornou parte de mim como nunca nada antes havia se tornado. Aquilo e muitas garrafas de vinho, e muitas noites em claro. E uma sede de aprendizado musical. O blues. Nessa época eu comecei a escrever, a compor, a realmente querer fazer algo mais do que só ouvir. Queria fazer. E conheci algumas pessoas que começaram a me ajudar nisso. Resolvemos montar um pequeno grupo, um trio, basicamente de blues e música pop. Foi então que vi aquele filme. E eu nem sabia o que era uma encruzilhada. Aquilo sim! Era isso! Pé na estrada, companheiro, poeira nos sapatos. Violão nas costas e muita história pra contar nos blues. Mas esse tal Robert Johnson. Por que tanto alarde em cima de um cara que tinha uma voz estranha, feia – o tipo de voz que hoje idolatro, num tal de Bob Dylan – e mal gravada? Eu já entendia a coisa toda do blues, sem esforço, a simplicidade complicada, o soco no estômago que era cada letra chorada e fui me apaixonando também pela gaita. Então, fui eu procurar tudo sobre o Robert Johnson, aquele velho que tocava um violão cru, e devia ter, sei lá, uns 60 anos de idade quando fez sucesso. Antes fosse. Talvez eu não tivesse ficado tão estarrecido. Isso mesmo... Sr. Robert Johnson, descansa em paz desde 1938, quando morreu aos... Vinte e sete anos. O primeiro da história – da música, claro –, o que abriu toda a mística, todo mistério envolvendo os vinte e sete anos. E talvez tenha mesmo sido ele o responsável, até. Segundo a lenda, que todos os fãs de música conhecem, o cara foi ter com o próprio Diabo numa encruzilhada, vendendo sua alma para aprender a tocar e obter sucesso com o blues. Conseguiu. Mas tomou o uísque errado, e se foi aos vinte e sete anos. Várias versões contam como foi sua morte, mas não vem ao caso. O fato é que, a partir dele, tudo aconteceu. Desde a popularização dos astros de rock com alguma coisa pra contar, até os mitos e polêmicas envolvendo artistas. Por ordem... Robert Johnson, em 1938, dentre muitas versões, envenenado por um marido ciumento. Brian Jones, guitarrista dos Stones, em 1969 encontrado morto na piscina de sua casa, certamente depois de uso pesado de cocaína. Jimi Hendrix, em 1970, afogado no próprio vômito, depois de uma noite de bebedeira e drogas e coquetéis de barbitúricos pra dormir. Janis Joplin, em 1970, apenas dois meses após o Hendrix, overdose de heroína quando saiu pra comprar cigarros. Jim Morrison, em 1971 (que sequência, hein?), ataque cardíaco na banheira de seu quarto de hotel, em Paris, possivelmente depois de muita cocaína. Kurt Cobain, em 1994, entre outras versões, suicídio com um tiro de escopeta na cara, depois de sessões de heroína. Mas nada, nada mesmo, nesse universo louco do mundo da música, me fez sentir tanto quanto a próxima da lista.



                                                                 

            Eu nunca fui muito fã da pessoa. Mas reconheço, desde o início, que a música era incrível! Como alguém, hoje em dia, podia conseguir tal sonoridade, tão vintage, tão anos 40, e ainda cantar como se não fosse ela mesma? Inexplicável, eu diria. Sempre, ouvindo aquele som, eu tinha a impressão de estar ouvindo uma negra, daquelas bem Chicago, cantando, jogando a alma pra fora, entre um gole de uísque e mais um trago no cigarro. Mas não. E não era possível. Era só uma inglesa, branca e baixinha. E, claro, entre doses e mais doses de uísque, tragos em cigarros e muita, muita droga. E genial. Amy Winehouse sempre foi pra mim como uma inimiga, porque ela fazia o que eu queria fazer, e não conseguia, musicalmente falando. Há muito tempo não via alguém cantar como ela, se não fosse negra ou homem, como Eddie Veder, ou o próprio Kurt, ou Robert Plant. A riqueza musical que Winehouse tinha era algo inconfundível e incompreensível. A dor que ela cantava era tirada de tudo no blues e as experiências de vida, que eram o próprio blues. A personalidade explosiva, e o carisma eram um ponto muito forte também, mas esse foi o problema. As desilusões amorosas, problemas familiares e a vida de estrela da música levaram-na a se perder nesse universo. O controle de tudo lhe fugiu das mãos. Até aí, tudo bem, não fosse a necessidade do público, do mundo, de fabricar defuntos para que se tornem lendas. A necessidade do público em mais uma fofoca, mais um escândalo, mais uma bebedeira, esquecendo da música incrível que ela fez. Sinceramente, pra mim, quem matou Amy Winehouse foi o público, e essa sede de saber da vida dos outros, pra esquecer que a sua própria já é miserável o suficiente. É, isso tudo a matou. Pra quê produzir mais, pra quê criatividade, pra quê mais um disco, se ninguém quer nem saber? A desgraça da internet, da informação rápida e barata, dos folhetins eletrônicos foi o que matou Amy Winehouse. E daí que ela usava drogas? E daí que bebia? E daí, da mesma forma, se ela era solitária? Se era triste e depressiva? Se sofria de amor?  Se ninguém ligava? Você ligava? Eu não ligava. Mas eu, sem falsa modéstia, queria a música. Amy Winehouse foi muito além de tabloides e pobres folhetins. Ela foi a música. O que ela se tornou foi necessidade do público. E isso é o artista. Torna-se o que o povo quer. É para o público que trabalha o artista. É pelo público que ele é o que é no palco, e na frente das câmeras, e posando pros flashes. E Amy se tornou o que quiseram que ela se tornasse. E morreu como o público quis que ela morresse. E aos vinte e sete anos de idade.

            Não me importa saber se morreu de overdose, de cirrose, ou se caiu no banheiro. Me importa o que ela deixa. Nada de legado, que não existe mais legado. Não se fazem mais legados num mundo onde a informação corre com o vento, e a cada minuto, em cada esquina, alguém faz história que será vendida pra TV, ou será contada em algum livro barato, ou até mesmo gravada em disco, como música plástica. Ela deixa a música. Exemplo de criatividade, de alma pra sentir, de coração pra sangrar, de voz pra arranhar. Me choca ainda mais a história dela, pois me é contemporânea. Todos os outros do “Clube dos Vinte e Sete” já haviam ido, muito antes de eu conhecê-los. E é como se, mesmo já tendo ido, eu os encontrasse agora, os estivesse conhecendo, como se pra mim estivessem nascendo. Diferente dela, de quem estou, diante de tudo isso, me despedindo. Não é estranho pensar isso? Sim, mas eu sou estranho. Estranho como Hendrix, Morrison, Joplin, ou Johnson. Como Jones, Cobain ou Winehouse. E é também estranho quando penso que tenho vinte e sete anos, e nenhuma vontade de me juntar a eles, a não ser em algum lugar do universo, onde o que nos une é a música. Então, acho que tenho de cumprimenta-los devidamente.

            Olá, Sr. Robert Johnson. Olá, Brian Jones. Olá, Jimi e Janis. Olá, Morrison. Olá, Kurt. E adeus Amy. Sinto decepciona-los, mas ainda estou aqui.


                                                                                                     Thiago Cruz, 29 de Julho, 2011.




                                                                             

domingo, 10 de julho de 2011

Beira de beco

E eu ando, e continuo andando por essas ruas enlameadas, frias e enfastiadas de tudo que foi durante o dia. Tudo que se foi por ela, em verdade, são como ramos de pétalas de flores jogadas ao vento, ao relento, como estou eu agora, ralentando minha passagem por aqui. Se é que não estancarei por essa esquina mesmo, jorrando lamentações como sangue de ferida aberta.
Canto à rua, numa voz que rasga a noite. Rouca e sem tonia, invento sintonia entre a madrugada e minha dor. Essa voz embargada, barricada de uísque barato, dói nos ouvidos de quem não quer ouvir, e sangra os dos que se encorajam a dar-lhe ouvidos. Sugiro a mim mesmo alguns passos, pra manter o movimento dessa vida estacada, e não noto as poças que piso, e até arrisco sorriso, pois chorar seria como tempestade em poça d’água. A rua parece não acabar, e eu me faço de rogado, jogado ao meu próprio pulsar de vida, que já se vai caída, bandida. E se vai.
Canto à rua e meu canto é como uivo, dolorido, sentido e sem sentido. Mas somente quem uiva sabe dos seus sentidos, seus motivos. Como um velho blues cortante, num instante penso em parar, mas seria como emudecer definitivamente. Tudo que será se define neste pequeno e curto momento, que de curto só tem o tempo imposto pelo relógio. Se eu paro agora de uivar, o que será daqueles que uivam também? Pensariam como eu e, apaticamente, deixariam de fazê-lo, por puro zelo? Zelar a quê, se o zelador de tudo isso deixou isso tudo uma bagunça só? E permite que se limite a vida a pedaços de pão, ou cobertores sujos e encharcados, usados por um, dois ou três, num calor, e isso sim, humano, mundano. E santo.
Uivo por toda a noite e meu uivo é meu lamento, que tento despir a quem quiser, voyeur que seja. Despindo e cuspindo na cara do maldito, do dito pelo não dito, de tudo que tem escrito, sem prudência nem pudor, e que causam essa dor. E como dói nos ouvidos, esse lamento uivo canto. Espero um tanto novamente para voltar a cantar, mas não consigo mais, que lamento não se torna canto, nem o contrário, pois que são um só, como os velhos e derradeiros blues entoados naqueles campos de algodão que vi em algum lugar, algum filme noir. Mas pode ter sido só um livro. E eu me privo de tentar alcançar o coração de quem não quer dar a mão, ou ouvidos, ou o que seja pra que se alimente toda a revolta que se volta contra eles próprios. Mas, eles quem?



Meu lamento pelos becos de beira é, na verdade, meu choro. E como choro. Como pássaro canoro, num canto desaforo, irrito a garganta com esse cantar rouco. Pena que seja somente a garganta. Aquele incômodo que enxergava por aí ao me ouvir chorar lamentar uivar cantar era pura decepção e, portanto, imaginação que me permiti, que nem percebi quando sorri. A lâmpada de um poste se apaga, e uma nuvem fria me afaga com seu escorrer incessante. Giro sobre meus calcanhares e arrisco voltar ao ponto inicial, onde eu simplesmente cantava. Simplesmente.
Meu canto é meu choro.


                                                                               Thiago Cruz, 01 de Julho, 2011

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Que me confunde.

            O meu mundo caiu.
            Consternadamente
            Eu reconheço
            E estremeço
            A essa nova condição
            Que se faz a minha frente

            O meu mundo caiu
            Bem aos meus pés
            E também aos seus
            Que junto aos meus
            Agora não mais
            Andam em revés

            O meu mundo caiu
            Como caem os impérios
            Por tolos construídos
            E por fim ruídos
            Não contando intempéries
            E seus terrificantes mistérios

            O meu mundo caiu
            Como já disse antes
            Sem que eu pudesse esperar
            Antes que eu pudesse pensar
            Estávamos os dois perfilados
            Como livros nas estantes
           
            O meu mundo caiu
            Mundo que era meu
            E foi quando te vi
            Que o vi cair
            O meu mundo caiu
Bem ao lado do seu. 



quinta-feira, 2 de junho de 2011

Poeta Que Sou

Poeta que sou
Te escreveria declarações
Em verso e prosa
Poeta que sou
Escreveria canções
Que falassem de rosas

Poeta que sou
Publicaria um livro
Que teria seu nome
Poeta que sou
Me manteria vivo
Com amor que me mata a fome

Poeta que sou
Escreveria no céu
Com caneta imaginária
Poeta que sou
Lambuzaria de mel
Faria a comédia mais hilária

Poeta que sou
Faria tudo de novo
Mas diferente
Poeta que sou
Mostraria a todo o povo
Seria amante descabido e demente

Poeta que sou
Faria agora o que deixei pra trás
E não o que posso fazer, apenas
Poeta que sou
Reescreveria nossa história
Tudo a força de pena.

Com amor...