terça-feira, 2 de agosto de 2011

Olá, adeus.

Nasci numa noite agradável de Abril. Outono, daqueles que pensamos que nunca vai acabar. Foi uma noite perigosa, um parto complicado. Parece que a vida já estava me alertando sobre como seriam meus dias por aqui, e dificultou todo o início. Será que será complicado assim no final? Só posso esperar pra ver. Pois nasci numa noite muito complicada de Abril. Há vinte e sete anos.

            O universo sempre conspirou meio a favor, meio contra minha vida. Difícil entender. Nada na minha vida foi tão fácil quanto poderia ser. A não ser a capacidade de me relacionar com as artes. Desde cedo sempre gostei de ler, e os quadrinhos eram meus preferidos. Comecei a desenhar naturalmente, quase sem querer, quando um belo dia, aos três anos de idade, me vi rabiscando o que parecia ser um cavalo em alguma folha de papel. Não planejei, como “sabe, acho que vou aprender a desenhar”. Fui me aprimorando ao longo dos anos, me tornando mais detalhista – exatamente no limite que deveria ser –, e me sentia o máximo quando me pediam, quase imploravam pra que eu desenhasse alguma coisa, fosse pra ajudar em algum trabalho, fosse simplesmente pra verem um “artista em ação”. Nem precisariam implorar. Eu só queria alguma atenção.

            E foi assim até, sei lá, meus 15 anos, momento em que comecei a prestar mais atenção à música. Sempre fui cercado por ela, desde que nasci. Os vinis do meu pai também foram velhos companheiros na minha infância, e eu me orgulhava muito deles, porque sabia que nenhum dos meus amigos tinha discos tão legais quanto os do meu pai. Dylan, Chico, Zeppelin, Caetano, Belchior, Janis, Elis... Era tanta coisa legal e rara, que a música sempre foi algo muito presente em mim. Mas nunca havia prestado tanta atenção, até que meu primo me apresentou alguns sons que eu não fazia muita questão de procurar, porque já me orgulhava o bastante do que eu conhecia. E conheci, então, meu primeiro companheiro musical da turma dos vinte e sete. Morrison. Fiquei chocado com aquilo! Eu não fazia ideia de onde eu estava que até então não havia conhecido os Doors. Mas nada me impressionou mais do que a biografia do cara – olha a literatura aí de novo. Além de tudo que conheci sobre o gênio, o que mais me atraiu foi o fato de ter morrido aos vinte e sete anos. Não sabia porquê, só me atraiu. E era só o começo.

            Obviamente eu já conhecia Janis Joplin, mas não sabia de toda a mística envolvendo-a junto ao Morrison. A voz dela sempre me atraiu de uma forma mágica. Eu não sabia explicar o que era, e isso acontecia também com o Jim. Eu não gostava, necessariamente, não achava as vozes deles bonitas, mas era mágico. Prendia-me e eu simplesmente não conseguia parar de ouvir. Depois de um tempo, fiquei sabendo da história. Janis Joplin, 1970, vinte e sete anos, descansa em paz. Não cheguei a criar uma teoria da conspiração na minha cabeça, nem lembro se na hora liguei uma coisa com a outra, mas sei que, da mesma forma que antes, me chamou atenção. Talvez pelo fato de terem morrido tão jovens, e fazerem um som que remetia a um passado que eu não tinha vivido. Mas foi quando conheci outro cara, mais recente, que veio tudo à tona.


            Eu estava meio passado com todo o som que conhecia. A MPB não me atraía tanto mais, havia se tornado entediante, e eu precisava gritar. Claro. Eu estava com dezesseis anos e havia começado a aprender a tocar, a querer montar uma banda. E aquele som me arrebatou! Toda aquela sujeira sonora, mas melódica ao mesmo tempo, aquela voz que parecia que o mundo estava acabando e era o último grito da vida... Foi isso o que o Nirvana me despertou. Eu tinha vontade de sair correndo e gritando e tocando guitarra e compondo e sendo Kurt Cobain. Eu quis beber e ficar chapado, e chutar lixeiras e xingar o presidente e me tornar grosseiro e usar heroína. Mas no fundo eu sabia que não era isso. Que isso não definia aquilo tudo. E nunca fiz essas coisas. A não ser ficar chapado. Como sempre faço, e como não posso deixar de fazer, fui procurar livros, revistas, qualquer coisa que falasse deles. E fiquei chocado. Desta vez sim. Kurt Cobain, desde 1994, quando tinha vinte e sete anos de idade, descansa em paz. Mas ele me chocou mais, muito mais. A forma como morreu, sendo suicídio ou assassinato. Brutal. Ele foi, literalmente, retirado da vida aos vinte e sete. E acho isso injusto. Ainda mais pelo trabalho feito no disco acústico. Ouvir todas aquelas versões fantásticas de músicas já antes gravadas, num formato que me atraía desde pequeno... Mas uma música me abriu os olhos. E se tornou canção obrigatória nas rodas de amigos, e passei a executa-la tão bem que eu era impelido a toca-la, mesmo que não quisesse. Where Did You Sleep Last Night me arrebatou! Eu estava cansado de gritaria, de barulho demais, de distorção demais, e quando vim a saber que aquela era uma versão de um velho blues, eu quis saber o que era aquilo! Que tal de blues era aquele. E me viciei.


            Tudo que era relacionado ao blues eu queria ver, queria ler, queria ouvir, queria comprar, queria saber. Aquilo se tornou parte de mim como nunca nada antes havia se tornado. Aquilo e muitas garrafas de vinho, e muitas noites em claro. E uma sede de aprendizado musical. O blues. Nessa época eu comecei a escrever, a compor, a realmente querer fazer algo mais do que só ouvir. Queria fazer. E conheci algumas pessoas que começaram a me ajudar nisso. Resolvemos montar um pequeno grupo, um trio, basicamente de blues e música pop. Foi então que vi aquele filme. E eu nem sabia o que era uma encruzilhada. Aquilo sim! Era isso! Pé na estrada, companheiro, poeira nos sapatos. Violão nas costas e muita história pra contar nos blues. Mas esse tal Robert Johnson. Por que tanto alarde em cima de um cara que tinha uma voz estranha, feia – o tipo de voz que hoje idolatro, num tal de Bob Dylan – e mal gravada? Eu já entendia a coisa toda do blues, sem esforço, a simplicidade complicada, o soco no estômago que era cada letra chorada e fui me apaixonando também pela gaita. Então, fui eu procurar tudo sobre o Robert Johnson, aquele velho que tocava um violão cru, e devia ter, sei lá, uns 60 anos de idade quando fez sucesso. Antes fosse. Talvez eu não tivesse ficado tão estarrecido. Isso mesmo... Sr. Robert Johnson, descansa em paz desde 1938, quando morreu aos... Vinte e sete anos. O primeiro da história – da música, claro –, o que abriu toda a mística, todo mistério envolvendo os vinte e sete anos. E talvez tenha mesmo sido ele o responsável, até. Segundo a lenda, que todos os fãs de música conhecem, o cara foi ter com o próprio Diabo numa encruzilhada, vendendo sua alma para aprender a tocar e obter sucesso com o blues. Conseguiu. Mas tomou o uísque errado, e se foi aos vinte e sete anos. Várias versões contam como foi sua morte, mas não vem ao caso. O fato é que, a partir dele, tudo aconteceu. Desde a popularização dos astros de rock com alguma coisa pra contar, até os mitos e polêmicas envolvendo artistas. Por ordem... Robert Johnson, em 1938, dentre muitas versões, envenenado por um marido ciumento. Brian Jones, guitarrista dos Stones, em 1969 encontrado morto na piscina de sua casa, certamente depois de uso pesado de cocaína. Jimi Hendrix, em 1970, afogado no próprio vômito, depois de uma noite de bebedeira e drogas e coquetéis de barbitúricos pra dormir. Janis Joplin, em 1970, apenas dois meses após o Hendrix, overdose de heroína quando saiu pra comprar cigarros. Jim Morrison, em 1971 (que sequência, hein?), ataque cardíaco na banheira de seu quarto de hotel, em Paris, possivelmente depois de muita cocaína. Kurt Cobain, em 1994, entre outras versões, suicídio com um tiro de escopeta na cara, depois de sessões de heroína. Mas nada, nada mesmo, nesse universo louco do mundo da música, me fez sentir tanto quanto a próxima da lista.



                                                                 

            Eu nunca fui muito fã da pessoa. Mas reconheço, desde o início, que a música era incrível! Como alguém, hoje em dia, podia conseguir tal sonoridade, tão vintage, tão anos 40, e ainda cantar como se não fosse ela mesma? Inexplicável, eu diria. Sempre, ouvindo aquele som, eu tinha a impressão de estar ouvindo uma negra, daquelas bem Chicago, cantando, jogando a alma pra fora, entre um gole de uísque e mais um trago no cigarro. Mas não. E não era possível. Era só uma inglesa, branca e baixinha. E, claro, entre doses e mais doses de uísque, tragos em cigarros e muita, muita droga. E genial. Amy Winehouse sempre foi pra mim como uma inimiga, porque ela fazia o que eu queria fazer, e não conseguia, musicalmente falando. Há muito tempo não via alguém cantar como ela, se não fosse negra ou homem, como Eddie Veder, ou o próprio Kurt, ou Robert Plant. A riqueza musical que Winehouse tinha era algo inconfundível e incompreensível. A dor que ela cantava era tirada de tudo no blues e as experiências de vida, que eram o próprio blues. A personalidade explosiva, e o carisma eram um ponto muito forte também, mas esse foi o problema. As desilusões amorosas, problemas familiares e a vida de estrela da música levaram-na a se perder nesse universo. O controle de tudo lhe fugiu das mãos. Até aí, tudo bem, não fosse a necessidade do público, do mundo, de fabricar defuntos para que se tornem lendas. A necessidade do público em mais uma fofoca, mais um escândalo, mais uma bebedeira, esquecendo da música incrível que ela fez. Sinceramente, pra mim, quem matou Amy Winehouse foi o público, e essa sede de saber da vida dos outros, pra esquecer que a sua própria já é miserável o suficiente. É, isso tudo a matou. Pra quê produzir mais, pra quê criatividade, pra quê mais um disco, se ninguém quer nem saber? A desgraça da internet, da informação rápida e barata, dos folhetins eletrônicos foi o que matou Amy Winehouse. E daí que ela usava drogas? E daí que bebia? E daí, da mesma forma, se ela era solitária? Se era triste e depressiva? Se sofria de amor?  Se ninguém ligava? Você ligava? Eu não ligava. Mas eu, sem falsa modéstia, queria a música. Amy Winehouse foi muito além de tabloides e pobres folhetins. Ela foi a música. O que ela se tornou foi necessidade do público. E isso é o artista. Torna-se o que o povo quer. É para o público que trabalha o artista. É pelo público que ele é o que é no palco, e na frente das câmeras, e posando pros flashes. E Amy se tornou o que quiseram que ela se tornasse. E morreu como o público quis que ela morresse. E aos vinte e sete anos de idade.

            Não me importa saber se morreu de overdose, de cirrose, ou se caiu no banheiro. Me importa o que ela deixa. Nada de legado, que não existe mais legado. Não se fazem mais legados num mundo onde a informação corre com o vento, e a cada minuto, em cada esquina, alguém faz história que será vendida pra TV, ou será contada em algum livro barato, ou até mesmo gravada em disco, como música plástica. Ela deixa a música. Exemplo de criatividade, de alma pra sentir, de coração pra sangrar, de voz pra arranhar. Me choca ainda mais a história dela, pois me é contemporânea. Todos os outros do “Clube dos Vinte e Sete” já haviam ido, muito antes de eu conhecê-los. E é como se, mesmo já tendo ido, eu os encontrasse agora, os estivesse conhecendo, como se pra mim estivessem nascendo. Diferente dela, de quem estou, diante de tudo isso, me despedindo. Não é estranho pensar isso? Sim, mas eu sou estranho. Estranho como Hendrix, Morrison, Joplin, ou Johnson. Como Jones, Cobain ou Winehouse. E é também estranho quando penso que tenho vinte e sete anos, e nenhuma vontade de me juntar a eles, a não ser em algum lugar do universo, onde o que nos une é a música. Então, acho que tenho de cumprimenta-los devidamente.

            Olá, Sr. Robert Johnson. Olá, Brian Jones. Olá, Jimi e Janis. Olá, Morrison. Olá, Kurt. E adeus Amy. Sinto decepciona-los, mas ainda estou aqui.


                                                                                                     Thiago Cruz, 29 de Julho, 2011.




                                                                             

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