quarta-feira, 24 de agosto de 2011

De Mestre

Sobramos nós dois nesta mesa. Todos já se foram ou não fazem mais diferença. Somente nós dois, e o jogo continua. Sem cartas marcadas, sem truques, apesar de eu ter percebido um certo poker face de sua parte. E isso eu não sei fazer.
            Jogada após jogada vamos nos conhecendo como queríamos, sabendo onde fazer a melhor jogada, quando blefar, quando mostrar a mão, boa pra praticar Quiromancia, me disseram. Um tanto embaralhado, tudo isso, e vamos tentando desembaralhar tudo, com a maior prudência, mas sem a menor compaixão. Afinal, o jogo já está chegando ao fim, e ninguém parece se importar. Nem eu, nem você. Ou eu posso estar completamente enganado. Veremos. Mais uma rodada, três cartas pra cada um. Uísque sem gelo pra mim, cerveja pra você.
            Olho nos teus olhos e não consigo decifrar nem meio pensamento, nem um traço de vacilação. Eu, no entanto, jogo como se tivesse todas as cartas viradas. Primeiro eu, abro a rodada com uma carta grande. Minha mão está boa, e estou confiante. Logo perco meu sorrisinho otimista, porque você mata minha jogada com uma carta inesperada. E que desbanca a minha. Te olho nos olhos e nada vejo, não decifro um centímetro pra dentro de você. “Foi uma bela jogada”, pareço ouvi-la dizer. Mas não diz nada.
            A próxima jogada é minha novamente. Ainda me garanto duas boas jogadas com o que tenho na mão, mas a próxima já é quase uma jogada desesperada. Você me sacou e simplesmente me deixa pensar que ganhei, que minha jogada foi de mestre. E pra falar a verdade noto uma ponta de confusão em sua resposta. Mais um Jack Daniel’s duplo, que essa merece. Há-há! Agora percebo o que eu talvez devesse ter feito de início. Pode ser que ainda dê tempo de reverter todo o meu nervosismo. Quase nem penso na próxima jogada, de tão confiante. Mas, num instante, você esfria novamente, e nada em seu olhar me diz o que procuro. Nem me diz nada.
            Já não há muito que fazer, nada que seja surpreendente. Eu jogo, você joga e pronto. Quem ganhar ganhou. Quem perder não vai só perder, mas vai remoer, sofrendo essa derrota talvez pelo resto da vida, ou enquanto durar minha dose e eu tiver que ficar tentando decifrar o que há por trás desses olhinhos que nada mais me dizem. Dou minha última cartada e quando cai sobre a mesa quase posso sentir o peso do mundo caindo sobre ela. É como se uma tonelada de culpa e dúvida recaísse sobre essa jogada final. Todos os movimentos agora parecem correr em câmera lenta. Você aguarda. Paciente, olha pra minha carta sobre a plataforma, e me olha fundo nos olhos, decifra minha alma, decifra tudo. Só eu não decifro nada. Olha-me como se me desse um último beijo de misericórdia, como se afagasse meus cabelos dizendo “tolinho... não é assim tão fácil”. Lança a última carta e é como se jogasse na minha cara, e chega a doer. Você me vence, quase pelo cansaço, mais pelo meu desespero. Se tivesse feito certas jogadas antes talvez as coisas fossem diferentes. Resigno-me e termino meu uísque, que me amarga a alma como nunca antes. Ficamos os dois sem saber o que dizer. Apesar da frieza em sua face, sei que sente minha derrota como se fosse sua. Sobramos só nós dois aqui, pra essa rodada, e alguém tinha que sair de mãos vazias. Mas aí... Você se surpreende quando peço outra rodada de uísque. Você ainda não sabe, nem eu, pra falar a verdade. Mas posso ter alguma carta na manga. Pode ser, pode ser.
            Xeque!



Thiago Cruz, 11 de Julho, 2011

Um comentário:

  1. Que seja o Coringa, penso eu daqui do balcão do bar, acompanhando esse jogo de longe.

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