quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Junho

Primeiro da série "Eu, Lobo"

Caem por aqui todas as folhas. Secas, semi secas, quebradiças... Mas, curiosamente, nenhuma folha fresca caiu. Nenhuma daquelas que olhamos e sabemos que caíram por força da natureza, que cairiam com o tempo, e seriam esquecidas por esse tempo afora, jogadas ao vento, na indiferença de existir, subsistindo. Nenhuma folha fresca caiu. Foram, pois, arrancadas.
            Me envolve bastante esse fim de Junho, frio e seco, ventoso, vão e arrogante. A brisa de Abril que me acariciava, de repente, torna-se ventania que me talha a carne. Que me dói e me faz tremer. As flores que antes me permitiam canta-las deram lugar a simples talos secos e sem graça. As árvores sujeitam-se ao sabor, que não é mais tão agradável, dessas rajadas de vento que impunemente as golpeiam. As ferem. E me ferem também.
            Canto a noite junto a Lua de Junho, uivo a ela, praticamente. E meu uivo é meu lamento. Neste caso, posso dizer que choro. Uma pena ela não ouvir. Gostaria que sentisse a dor que sinto, pois como é dolorido chorar sozinho. Um lobo solitário, quase um cão sem dono ladrando por aí, uivando meu lamento aos quatro ventos, tão cáusticos apunhalando minha voz, que respondo doído, que ele pode me levar, que o brilho dessa Lua poderia me lavar, que de nada adianta.
            Louvo a noite dessa forma, e ela não corresponde aos meus louvores, meus uivos, meu lamento. Mas é esse cheiro da noite que me faz bem. Esse odor que vem no véu desse vento inane. Não necessito resposta direta, resposta falada. Sempre fui homem de palavras, de falar e de falar muito. Mas o meu aguardo, quase sempre longo demais para quase tudo, me ajudou a tornar-me minudente ao expor meus desejos, mas reticente em relação ao lugar onde me levaria essa exposição. Portanto, hoje, acho que não necessito resposta, porque sei que me escuta quando sonho, assim como te sinto, me cortando, me talhando a pele, me fazendo sangrar, ao sentir esse vento indolente. E me torno, também, quase indolente junto dele, que de certa forma me fortalece.
            Eu, lobo. Solitário na minha varanda, que dá pra Lua, que dá vista pra rua, que te expõe nua na minha mente, na minha alma talhada, dilapidada pela indiferença, marcada a ferro, derretida a fogo, maculada por tanto... Tanto. E meu lamento se faz mais forte a cada minuto que passo longe de você, que inevitavelmente, incorrigivelmente torno-me esse solitário das pradarias - e mudo de lobo pra coiote sem nem perceber, percebe? Choro e tento me juntar a outros tantos coiotes de estepes doloridas, ao menos em meu devanear solitário de dolor crônico. Não encontro tantos quando deveria. Logo se voltam para seus próprios caminhos, como devem mesmo fazer. Como eu deveria mesmo fazer. Virar as costas, tornar a fronte e, como refrão doído dos idos de ’40, continuar lamentando. Uivando à Lua.
            Continuo aqui, na planície da minha solidão, e só posso esperar o próximo Abril chegar, mesmo que ainda seja Junho. Esse frio Junho de minh’alma.



                                                          Thiago Cruz, 29.06.2011

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Sonho de Velha Canção

          Acordei com um gosto de não sei o quê na boca. Não sei. Parecia algo que não vivi ainda. Aquele gosto de vontade, de querer o infinito. Gosto de noite longa, gosto de acordar gostoso. Um gosto de saudade, que te gosto muito. Gosto de saudade.
          Me salta aos olhos um dia inteiro, de tudo que quero sentir. De tudo que penso de tudo. E tudo que se faz pensamento é só por mais um dia. Amanhã serão outros, será outro dia. Da minha boca uma canção de velhos tempos, de estrofes envelhecidas, amareladas, com aquele cheiro de música velha, que se escreve em letras de rodapé. Vou cantarolando e, sem perceber, arrisco passinhos de dança sobre meus pés, pequenos em relação a esse mundo, grande demais para os meus pés, pequeno demais para a minha vontade. Vontade de sair dançando, mesmo sem par.
          Na minha cabeça, enquanto danço por aí, me imagino personagem d’algum livro bom, daqueles que se tem na cabeceira, ou esquecido em alguma caixa velha. Daqueles com cheiro bom de livro. Enquanto componho meu romance, sinto-me dançando sobre as linhas que escrevo no ar. Cada sílaba é um passinho. Cada palavra um giro no ar. A cada estrofe termino com meu ponto final, um passo firme, e espero um segundo ou dois para recomeçar.
          Olha aí os personagens que compõem minha história. A menininha que passa de mãos dadas com a mãe, me olhando, é aquela prima que vem visitar nos fins de semana, e me puxa pelo braço pra irmos brincar no balanço. A moça parada no ponto de ônibus, enfastiada pela bagunça que a cerca é a tia gorda que me repreende pelo meu jeito libertário, avesso às tradições da família. O cãozinho vira-latas que trança pelas pernas da multidão é meu fiel companheiro, naqueles momentos em que me tranco em meu mundo, meu quarto, de mal com o mundo todo. Um a um os personagens passantes vão fazendo tudo na minha cabeça. Só não consigo encontra-la. Aquela que seria meu amor platônico, meu romance impossível, a bela dos meus olhos. Ela não existe. É um romance impossível.
          Deixo de lado meu modesto roteiro, por hora. A lembrança dessa moça que eu nem sei quem seria me absorve, e me pego cantarolando minha saudade. E a saudade me encanta. Fecho os olhos por um instante e me enxergo pé ante pé sobre a faixa de pedestres, como nas teclas de um piano, e nele toco e cantarolo Smile, como um Chaplin de cabelos encaracolados e calça jeans surrada. Ah, como eu queria caminhar sobre teclas de piano. Ah, como eu queria tocar música na faixa de pedestre.
          Apenas acordei nesta manhã, como em todas as outras, e tudo se fez. E tudo ainda se faz. Na boca um gosto de saudade. Nos pés um passo de dança. Na cabeça os caracóis num romance antigo. E a vontade de uma velha canção no ouvido. Na boca, um gosto de não sei o quê lá.



                                                                         Thiago Cruz, 05 de Julho, 2011.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Saudade é saudade

Saudade é como música
Daquelas que não se entende
Mas se sente como corte
De faca cega, amolada pelo tempo

Saudade é samba no salão
Sozinho e sem confete
É afinar o violão
Sem ter o que tocar

Saudade é blues inacabado
Que não se sabe como começar
É o canto choro de um fado
Que dói fundo, além-mar

Saudade é livro de páginas em branco
Daqueles que se lê sem pudor
Daqueles que nos dão imensa fome
E se escreve em cada página
O seu nome.

Dedicado

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

De Mestre

Sobramos nós dois nesta mesa. Todos já se foram ou não fazem mais diferença. Somente nós dois, e o jogo continua. Sem cartas marcadas, sem truques, apesar de eu ter percebido um certo poker face de sua parte. E isso eu não sei fazer.
            Jogada após jogada vamos nos conhecendo como queríamos, sabendo onde fazer a melhor jogada, quando blefar, quando mostrar a mão, boa pra praticar Quiromancia, me disseram. Um tanto embaralhado, tudo isso, e vamos tentando desembaralhar tudo, com a maior prudência, mas sem a menor compaixão. Afinal, o jogo já está chegando ao fim, e ninguém parece se importar. Nem eu, nem você. Ou eu posso estar completamente enganado. Veremos. Mais uma rodada, três cartas pra cada um. Uísque sem gelo pra mim, cerveja pra você.
            Olho nos teus olhos e não consigo decifrar nem meio pensamento, nem um traço de vacilação. Eu, no entanto, jogo como se tivesse todas as cartas viradas. Primeiro eu, abro a rodada com uma carta grande. Minha mão está boa, e estou confiante. Logo perco meu sorrisinho otimista, porque você mata minha jogada com uma carta inesperada. E que desbanca a minha. Te olho nos olhos e nada vejo, não decifro um centímetro pra dentro de você. “Foi uma bela jogada”, pareço ouvi-la dizer. Mas não diz nada.
            A próxima jogada é minha novamente. Ainda me garanto duas boas jogadas com o que tenho na mão, mas a próxima já é quase uma jogada desesperada. Você me sacou e simplesmente me deixa pensar que ganhei, que minha jogada foi de mestre. E pra falar a verdade noto uma ponta de confusão em sua resposta. Mais um Jack Daniel’s duplo, que essa merece. Há-há! Agora percebo o que eu talvez devesse ter feito de início. Pode ser que ainda dê tempo de reverter todo o meu nervosismo. Quase nem penso na próxima jogada, de tão confiante. Mas, num instante, você esfria novamente, e nada em seu olhar me diz o que procuro. Nem me diz nada.
            Já não há muito que fazer, nada que seja surpreendente. Eu jogo, você joga e pronto. Quem ganhar ganhou. Quem perder não vai só perder, mas vai remoer, sofrendo essa derrota talvez pelo resto da vida, ou enquanto durar minha dose e eu tiver que ficar tentando decifrar o que há por trás desses olhinhos que nada mais me dizem. Dou minha última cartada e quando cai sobre a mesa quase posso sentir o peso do mundo caindo sobre ela. É como se uma tonelada de culpa e dúvida recaísse sobre essa jogada final. Todos os movimentos agora parecem correr em câmera lenta. Você aguarda. Paciente, olha pra minha carta sobre a plataforma, e me olha fundo nos olhos, decifra minha alma, decifra tudo. Só eu não decifro nada. Olha-me como se me desse um último beijo de misericórdia, como se afagasse meus cabelos dizendo “tolinho... não é assim tão fácil”. Lança a última carta e é como se jogasse na minha cara, e chega a doer. Você me vence, quase pelo cansaço, mais pelo meu desespero. Se tivesse feito certas jogadas antes talvez as coisas fossem diferentes. Resigno-me e termino meu uísque, que me amarga a alma como nunca antes. Ficamos os dois sem saber o que dizer. Apesar da frieza em sua face, sei que sente minha derrota como se fosse sua. Sobramos só nós dois aqui, pra essa rodada, e alguém tinha que sair de mãos vazias. Mas aí... Você se surpreende quando peço outra rodada de uísque. Você ainda não sabe, nem eu, pra falar a verdade. Mas posso ter alguma carta na manga. Pode ser, pode ser.
            Xeque!



Thiago Cruz, 11 de Julho, 2011

Momento de Esquecer...

Talvez seja
O momento de esquecer
Da vontade de lhe ter;
O momento de acabar
Com a vontade de lhe beijar;
O momento de sair
Da tua vida, sem despedir;

A hora certa de olhar pra mim
E entender que chegamos ao fim.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Anos-Luz - Agosto

Da série "Eu, Lobo"


Já passa da hora. E eu ainda aqui, de ouvidos atentos, com os sentidos aguçados, mas sem saber direito o porquê, como animal à espreita de nada, sem ter presa, sem ter pressa. Faz calor e caminhar por essas ruas tem sido cansativo, e cada dia mais cansativo. É como subir uma avenida e ficar sem saber em qual das ruas laterais entrar. Exatamente assim.

                Cansado do jeito como a vida tem sido, cansado das pedras que ela tem colocado em meus caminhos, cansado de não ter nada mais a fazer além de me preocupar. Parece que não adianta chorar quando não se tem alguém por perto. Não adianta derramar lágrimas à ninguém, deixando-as rolar ao vento. Portanto choro à Lua. Daqui de cima, do alto dessa rua, posso vê-la surgindo por trás da selva de pedra de minha vida. Por trás dos morros que compõem a paisagem mais inóspita deste, agora, nada belo horizonte. Mas ela o refaz de uma forma simples e terrificante, nos colocando quase no limbo, entre nossa pequena e quase falida existência e sua espetacular e, a cada dia mais em expansão, grandeza. Viro-me para olhar essa imagem como se fosse a última da minha vida. Como se dali pra frente nada mais eu visse e essa seria a imagem gravada na minha mente, na, então daí, escuridão da minha retina.

                A partir desse momento é como se nada mais ao meu redor se movesse, como se no minuto em que eu paro, o universo – meu pequeno universo – também parasse. Como se nada mais fosse tão importante quanto esse momento: a Lua e eu. Meu choro velado e seu acalentar distante. Minha grande pequenez e sua pequena grandiosidade. Sinto que existe uma aura de tensão entre nós, nesse espaço que nos separa, nesses anos-luz que insistem em passar, luz após ano. O tempo que fico aqui, observando essa cena Homeresca – o que diria Homero? – nem chega a um minuto, quanto mais a ano-luz qualquer. Mas tudo que se passa vai num ritmo de um fado sôfrego e fatigado. Porque tudo parou, e vai parando e parando no meu momento. Tudo isso faz parte de um estranho quadro Salvadoresco – o que diria Dali? – onde a malemolência dos minutos percorre meu rosto empapada em sudorese.

                Sinto no topo de uma colina desértica, arenosa e minha, só minha. Sentado com os olhos lânguidos, a observa-la, vendo o pontear das primeiras estrelas, anunciando a noite que, pelo jeito, será longa. Sinto como se algo quisesse se desprender do fundo da minha garganta, vindo do âmago de minha alma, e me sobe pela espinha e me arrepia os pelos e põe em riste minhas orelhas e me traz um torpor como nunca antes havia sentido e é como se eu fosse uivar com todas as minhas forças expurgando todos os meus lamentos em um único abrir de boca e quando chega, finalmente...

                Lembro de que a vida deve voltar a correr em seu curso, seu tempo normal. Um último olhar, num último choroso adeus, e volto a caminhar de volta pra casa.





                                                                                                                        Thiago Cruz, 19 de Agosto, 2011.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Galhos Secos

Da série “Velho Velho Oeste”



No alto desta colina aguardo meu destino, que será o que o destino me reservar, incerto e impreciso, longe como minhas lembranças, minha saudade por ela. A eleita de minh’alma, que cruzou o caminho do meu coração e me fez bandido, mesmo tendo sido ela a roubar meu juízo. Ah, minha bela donzela. Fizestes-me calvário onde antes era verde colina. E aqui, no alto dela, aguardo meu destino.

           Atravessei todo o velho deserto desse oeste cáustico, infindo, a procura de não sei o quê, mas sentia que encontraria. O que quer que fosse. Tendo as estrelas como teto e as pedras como travesseiros, quase sem perceber já estava entrando naquele pequeno vilarejo, tão vazio de tudo que parecia uma cidade fantasma. Mais uma, apenas mais uma. Queria somente um lugar pra recostar a cabeça e descansar o espírito, um copo de qualquer coisa forte e um prato de coisa qualquer. Mas, como você sabe amigo, cidades fantasmas, vilarejos assim tão isolados, não são lá tão amigáveis com o que chamam de forasteiros. E comigo não foi diferente. Será sempre o mesmo e velho oeste. Mas disso você já sabe.



            Alguns níqueis ainda me restavam nos bolsos, afinal eu não teria muito com o que gastar pelo deserto. Restava saber se serviriam para alguma coisa por ali, onde havia acabado de chegar. Entrei no primeiro saloon que vi, e foram tantos os olhares e tão pesados, tão ameaçadores, que só tive coragem para dar dois passos atrás, e voltar por onde havia entrado. Fui caminhando pelas sombras das calçadas daquela cidade, silenciosamente, que além de refrescarem o calor escaldante do sol do meio-dia me mantinham quase incógnito.  Cautelosamente adentrei outra taberna e, por ali, o ar ameaçador estava nem um pouco mais leve, o que me fez ficar assim mesmo, pois já estava farto de procurar lugar amigável. Num canto alguns homens jogavam cartas com caras de raros amigos. Alguns bebedores solitários pelo balcão – estranho como esse ar do oeste faz os homens solitários – e o taberneiro. Pelo menos ele parecia um pouco mais camarada. Atravessei todo o saloon fingindo segurança, como se caminhasse por cima de todo aquele ar pesado. Nada precisei dizer, nem pedir.

            - Você parece com sede, garoto - e me estendeu uma caneca cheia, da melhor cerveja que eu havia tomado nos últimos dias, dias em que estive no deserto.

            - Sim, eu pareço.

            Quase de um gole só terminei a caneca e me senti novo. Ele me serviu outra, antes mesmo que eu terminasse a primeira. Talvez se ele soubesse de quanto eu dispunha nos bolsos não fosse assim, tão gentil. Assim como, se eu soubesse o que me esperava naquele lugar, talvez nunca tivesse sequer atravessado o chão quente do deserto, procurando não sei o quê. O que quer que fosse.






            - Não por essas bandas, seu filho de uma que ronca e fuça!

            Ouviu-se um brado pelo salão, seguido de alguns outros, ainda menos gentis. Uma confusão repentina na mesa dos nobres senhores que jogavam cartas. Um não-sei-o-quê Cartas na Manga resolveu provar o porquê de seu nome, mas não contava com a astúcia de um tal Abe Olhos Vivos, ou algo do tipo. E quando já estavam ali, prontos, com as mãos em seus coldres, um estrondo, bem ao meu lado, quase me deixa surdo. Era o taberneiro – qual era mesmo o nome dele? – colocando ordem em sua casa. Retirou de uma gaveta debaixo do balcão a maior escopeta que eu já tinha visto!

            - Pois eu é que o digo, seus cães sarnentos! Não por aqui, não no meu salão! Bebam e dancem, joguem e cantem, mas com respeito! Quem se fizer em contrário vai se ver com a minha Lucy, aqui!

            Percebi que o homem ao meu lado ficou ali, impassível diante do ocorrido. Ou era surdo, ou era o mais destemido dos que eu já havia visto.

            - Pois bem, - bradou novamente o taberneiro - nada aconteceu. Voltem a beber, que a minha cerveja não se transforma em dinheiro sozinha!

            Tudo voltou ao normal por ali, o que quer que normal queira dizer nesta cidade. Continuei a beber minha cerveja, com mais cuidado agora, pois não sabia se alguma atitude poderia ser interpretada diferente. E porque minha vida havia, então, mudado completamente, pouco antes daquilo tudo. Isso é ser um estranho em terra estranha, companheiro. Deixar de ser você mesmo pela aprovação dos outros. Ou pode morrer de alguma coisa, se quiser. De fome ou de amor.

           

            Pouco depois de começar a beber minha segunda caneca naquele balcão sujo, de repente tudo se iluminou. E eu nem sabia ainda como toda aquela luminescência me levaria às trevas em apenas alguns minutos. Levaria-me ao abismo do malfadado amor, abismo que vislumbro agora, de cima dessa colina. Mary Ann. Linda como o florescer da flor de cactos do deserto em noite de lua cheia. Os cabelos dourados, maravilhosamente cuidados, como a crina do mais nobre cavalo. Digo... Égua. Digo... É melhor não dizer nada, e me calar diante de meu destino, incerto, por certo, e em tributo a tão notável beleza.

            Eu nunca havia visto imagem tão bela, tão lindamente esculpida por Deus. Entrou naquele salão e foi como se a noite se fizesse dia. Como se, ao invés de acordar, eu estivesse entrando num sonho, o mais belo dos sonhos. Talvez pela minha fome, que poderia estar me trazendo delírios, talvez por ter estado tanto tempo isolado no cruel deserto do oeste, mas estava diante da eleita de minh’alma, que cruzou o caminho do meu coração e o fez parar.

            O homem ao meu lado, destemido cavalheiro ao que me pareceu, de pronto ordenou ao taberneiro.

            - Uma dose do que a moça for tomar, por minha conta.

            E também de pronto o velho do saloon o alertou sobre o comprometimento da moça, com um tal Jack Fulano de Tal. Não direi que não ouvi a informação – que fez, rapidamente, com que o estranho retirasse a gentileza. Muito destemido, mesmo. Mas foi como se eu não quisesse escutar, tão emaranhado estava àquele raio de sol. Ofereci eu mesmo algo para ela beber, sem nem me preocupar com o que tinha nos bolsos. O velho homem se fez de rogado e lhe entregou um copo com alguma bebida dentro, que nem me interessou saber o que era. De um canto, ela me sorriu de canto, me acenou levemente com a cabeça e suavemente sorveu o que tinha no copo. Parecia esperar alguém, e me vi tentado a acompanha-la em sua mesa.

            - Você não sabe onde está se metendo, rapaz – me disse o velho. Essa beleza não é pro seu bico.

            - Pois é para o bico de quem, senhor?

            - Não se meta onde não é chamado, garoto. Não importa de quem eu esteja falando. Estamos entendidos?

            - Pois lhe digo que não sofre o homem que tenta.

            Quisera eu acreditar realmente nestas palavras. Quisera eu fugir do sofrimento que me aguarda por ter tentado. Mas a cegueira de meu deslumbramento agiu por mim. E estou cá com meu destino, aguardando o fechar das cortinas de minha vida.



            O que se seguiu após essa impensada atitude de minha parte não vem ao caso, senão seu desfecho. Em poucos minutos corria pelo salão um burburinho que dizia, segundo pude ouvir, que Jack Quatro Olhos estava chegando a galope para tirar a limpo aquela história de que sua bela Mary Ann estava sendo importunada por algum forasteiro que dizia ser o mais valente de todo o oeste, desafiando-o a lutar pelo amor da beldade em duelo de armas, ainda à luz daquele dia. Nesse ínterim ocorreu o incidente do jogo de cartas, o que também não vem mais ao caso. Não sei se você sabe, mas um forasteiro nesse tipo de cidade nada mais é que um bandido botas sujas em potencial, mesmo que tudo que digam sobre você seja plena mentira. E, sim... A partir daquele momento toda a cidade estaria nos meus calcanhares, pagando pra ver meu último suspiro. Por sorte, o velho taberneiro me deu cobertura, me fazendo sair pelos fundos de seu honorável saloon. Por azar, eu não fazia ideia de para onde ir. Nem tinha condições de ir a lugar nenhum. Como corisco, atravessei um campo seco de vida e mais que depressa subi a colina que me pareceu mais distante da confusão. Nem notei que, diante do meu cansaço, aquela era, na verdade, a mais próxima do meu martírio.



            Quando já estava no pé da árvore mais seca no topo desta colina, percebi que ainda levava a caneca com algum resquício de cerveja escura. O meu último gole talvez. Nem sei de onde consegui tempo para este relato, pois já ouço vozes e o trotar de cavalos cada vez mais próximo. Lanço um último olhar sobre aquela pequena cidade, como numa benção de adeus, como um brinde ao amor encontrado, já perdido. Ali ficou meu coração. Ali, um pedaço de minha alma. Ali, o último suspiro de maldita paixão. Um último gole. Um brinde ao amor, um gole ao adeus.


                                                                                   Thiago Cruz, 02 de Agosto, 2011





                                                                                           

Olá, adeus.

Nasci numa noite agradável de Abril. Outono, daqueles que pensamos que nunca vai acabar. Foi uma noite perigosa, um parto complicado. Parece que a vida já estava me alertando sobre como seriam meus dias por aqui, e dificultou todo o início. Será que será complicado assim no final? Só posso esperar pra ver. Pois nasci numa noite muito complicada de Abril. Há vinte e sete anos.

            O universo sempre conspirou meio a favor, meio contra minha vida. Difícil entender. Nada na minha vida foi tão fácil quanto poderia ser. A não ser a capacidade de me relacionar com as artes. Desde cedo sempre gostei de ler, e os quadrinhos eram meus preferidos. Comecei a desenhar naturalmente, quase sem querer, quando um belo dia, aos três anos de idade, me vi rabiscando o que parecia ser um cavalo em alguma folha de papel. Não planejei, como “sabe, acho que vou aprender a desenhar”. Fui me aprimorando ao longo dos anos, me tornando mais detalhista – exatamente no limite que deveria ser –, e me sentia o máximo quando me pediam, quase imploravam pra que eu desenhasse alguma coisa, fosse pra ajudar em algum trabalho, fosse simplesmente pra verem um “artista em ação”. Nem precisariam implorar. Eu só queria alguma atenção.

            E foi assim até, sei lá, meus 15 anos, momento em que comecei a prestar mais atenção à música. Sempre fui cercado por ela, desde que nasci. Os vinis do meu pai também foram velhos companheiros na minha infância, e eu me orgulhava muito deles, porque sabia que nenhum dos meus amigos tinha discos tão legais quanto os do meu pai. Dylan, Chico, Zeppelin, Caetano, Belchior, Janis, Elis... Era tanta coisa legal e rara, que a música sempre foi algo muito presente em mim. Mas nunca havia prestado tanta atenção, até que meu primo me apresentou alguns sons que eu não fazia muita questão de procurar, porque já me orgulhava o bastante do que eu conhecia. E conheci, então, meu primeiro companheiro musical da turma dos vinte e sete. Morrison. Fiquei chocado com aquilo! Eu não fazia ideia de onde eu estava que até então não havia conhecido os Doors. Mas nada me impressionou mais do que a biografia do cara – olha a literatura aí de novo. Além de tudo que conheci sobre o gênio, o que mais me atraiu foi o fato de ter morrido aos vinte e sete anos. Não sabia porquê, só me atraiu. E era só o começo.

            Obviamente eu já conhecia Janis Joplin, mas não sabia de toda a mística envolvendo-a junto ao Morrison. A voz dela sempre me atraiu de uma forma mágica. Eu não sabia explicar o que era, e isso acontecia também com o Jim. Eu não gostava, necessariamente, não achava as vozes deles bonitas, mas era mágico. Prendia-me e eu simplesmente não conseguia parar de ouvir. Depois de um tempo, fiquei sabendo da história. Janis Joplin, 1970, vinte e sete anos, descansa em paz. Não cheguei a criar uma teoria da conspiração na minha cabeça, nem lembro se na hora liguei uma coisa com a outra, mas sei que, da mesma forma que antes, me chamou atenção. Talvez pelo fato de terem morrido tão jovens, e fazerem um som que remetia a um passado que eu não tinha vivido. Mas foi quando conheci outro cara, mais recente, que veio tudo à tona.


            Eu estava meio passado com todo o som que conhecia. A MPB não me atraía tanto mais, havia se tornado entediante, e eu precisava gritar. Claro. Eu estava com dezesseis anos e havia começado a aprender a tocar, a querer montar uma banda. E aquele som me arrebatou! Toda aquela sujeira sonora, mas melódica ao mesmo tempo, aquela voz que parecia que o mundo estava acabando e era o último grito da vida... Foi isso o que o Nirvana me despertou. Eu tinha vontade de sair correndo e gritando e tocando guitarra e compondo e sendo Kurt Cobain. Eu quis beber e ficar chapado, e chutar lixeiras e xingar o presidente e me tornar grosseiro e usar heroína. Mas no fundo eu sabia que não era isso. Que isso não definia aquilo tudo. E nunca fiz essas coisas. A não ser ficar chapado. Como sempre faço, e como não posso deixar de fazer, fui procurar livros, revistas, qualquer coisa que falasse deles. E fiquei chocado. Desta vez sim. Kurt Cobain, desde 1994, quando tinha vinte e sete anos de idade, descansa em paz. Mas ele me chocou mais, muito mais. A forma como morreu, sendo suicídio ou assassinato. Brutal. Ele foi, literalmente, retirado da vida aos vinte e sete. E acho isso injusto. Ainda mais pelo trabalho feito no disco acústico. Ouvir todas aquelas versões fantásticas de músicas já antes gravadas, num formato que me atraía desde pequeno... Mas uma música me abriu os olhos. E se tornou canção obrigatória nas rodas de amigos, e passei a executa-la tão bem que eu era impelido a toca-la, mesmo que não quisesse. Where Did You Sleep Last Night me arrebatou! Eu estava cansado de gritaria, de barulho demais, de distorção demais, e quando vim a saber que aquela era uma versão de um velho blues, eu quis saber o que era aquilo! Que tal de blues era aquele. E me viciei.


            Tudo que era relacionado ao blues eu queria ver, queria ler, queria ouvir, queria comprar, queria saber. Aquilo se tornou parte de mim como nunca nada antes havia se tornado. Aquilo e muitas garrafas de vinho, e muitas noites em claro. E uma sede de aprendizado musical. O blues. Nessa época eu comecei a escrever, a compor, a realmente querer fazer algo mais do que só ouvir. Queria fazer. E conheci algumas pessoas que começaram a me ajudar nisso. Resolvemos montar um pequeno grupo, um trio, basicamente de blues e música pop. Foi então que vi aquele filme. E eu nem sabia o que era uma encruzilhada. Aquilo sim! Era isso! Pé na estrada, companheiro, poeira nos sapatos. Violão nas costas e muita história pra contar nos blues. Mas esse tal Robert Johnson. Por que tanto alarde em cima de um cara que tinha uma voz estranha, feia – o tipo de voz que hoje idolatro, num tal de Bob Dylan – e mal gravada? Eu já entendia a coisa toda do blues, sem esforço, a simplicidade complicada, o soco no estômago que era cada letra chorada e fui me apaixonando também pela gaita. Então, fui eu procurar tudo sobre o Robert Johnson, aquele velho que tocava um violão cru, e devia ter, sei lá, uns 60 anos de idade quando fez sucesso. Antes fosse. Talvez eu não tivesse ficado tão estarrecido. Isso mesmo... Sr. Robert Johnson, descansa em paz desde 1938, quando morreu aos... Vinte e sete anos. O primeiro da história – da música, claro –, o que abriu toda a mística, todo mistério envolvendo os vinte e sete anos. E talvez tenha mesmo sido ele o responsável, até. Segundo a lenda, que todos os fãs de música conhecem, o cara foi ter com o próprio Diabo numa encruzilhada, vendendo sua alma para aprender a tocar e obter sucesso com o blues. Conseguiu. Mas tomou o uísque errado, e se foi aos vinte e sete anos. Várias versões contam como foi sua morte, mas não vem ao caso. O fato é que, a partir dele, tudo aconteceu. Desde a popularização dos astros de rock com alguma coisa pra contar, até os mitos e polêmicas envolvendo artistas. Por ordem... Robert Johnson, em 1938, dentre muitas versões, envenenado por um marido ciumento. Brian Jones, guitarrista dos Stones, em 1969 encontrado morto na piscina de sua casa, certamente depois de uso pesado de cocaína. Jimi Hendrix, em 1970, afogado no próprio vômito, depois de uma noite de bebedeira e drogas e coquetéis de barbitúricos pra dormir. Janis Joplin, em 1970, apenas dois meses após o Hendrix, overdose de heroína quando saiu pra comprar cigarros. Jim Morrison, em 1971 (que sequência, hein?), ataque cardíaco na banheira de seu quarto de hotel, em Paris, possivelmente depois de muita cocaína. Kurt Cobain, em 1994, entre outras versões, suicídio com um tiro de escopeta na cara, depois de sessões de heroína. Mas nada, nada mesmo, nesse universo louco do mundo da música, me fez sentir tanto quanto a próxima da lista.



                                                                 

            Eu nunca fui muito fã da pessoa. Mas reconheço, desde o início, que a música era incrível! Como alguém, hoje em dia, podia conseguir tal sonoridade, tão vintage, tão anos 40, e ainda cantar como se não fosse ela mesma? Inexplicável, eu diria. Sempre, ouvindo aquele som, eu tinha a impressão de estar ouvindo uma negra, daquelas bem Chicago, cantando, jogando a alma pra fora, entre um gole de uísque e mais um trago no cigarro. Mas não. E não era possível. Era só uma inglesa, branca e baixinha. E, claro, entre doses e mais doses de uísque, tragos em cigarros e muita, muita droga. E genial. Amy Winehouse sempre foi pra mim como uma inimiga, porque ela fazia o que eu queria fazer, e não conseguia, musicalmente falando. Há muito tempo não via alguém cantar como ela, se não fosse negra ou homem, como Eddie Veder, ou o próprio Kurt, ou Robert Plant. A riqueza musical que Winehouse tinha era algo inconfundível e incompreensível. A dor que ela cantava era tirada de tudo no blues e as experiências de vida, que eram o próprio blues. A personalidade explosiva, e o carisma eram um ponto muito forte também, mas esse foi o problema. As desilusões amorosas, problemas familiares e a vida de estrela da música levaram-na a se perder nesse universo. O controle de tudo lhe fugiu das mãos. Até aí, tudo bem, não fosse a necessidade do público, do mundo, de fabricar defuntos para que se tornem lendas. A necessidade do público em mais uma fofoca, mais um escândalo, mais uma bebedeira, esquecendo da música incrível que ela fez. Sinceramente, pra mim, quem matou Amy Winehouse foi o público, e essa sede de saber da vida dos outros, pra esquecer que a sua própria já é miserável o suficiente. É, isso tudo a matou. Pra quê produzir mais, pra quê criatividade, pra quê mais um disco, se ninguém quer nem saber? A desgraça da internet, da informação rápida e barata, dos folhetins eletrônicos foi o que matou Amy Winehouse. E daí que ela usava drogas? E daí que bebia? E daí, da mesma forma, se ela era solitária? Se era triste e depressiva? Se sofria de amor?  Se ninguém ligava? Você ligava? Eu não ligava. Mas eu, sem falsa modéstia, queria a música. Amy Winehouse foi muito além de tabloides e pobres folhetins. Ela foi a música. O que ela se tornou foi necessidade do público. E isso é o artista. Torna-se o que o povo quer. É para o público que trabalha o artista. É pelo público que ele é o que é no palco, e na frente das câmeras, e posando pros flashes. E Amy se tornou o que quiseram que ela se tornasse. E morreu como o público quis que ela morresse. E aos vinte e sete anos de idade.

            Não me importa saber se morreu de overdose, de cirrose, ou se caiu no banheiro. Me importa o que ela deixa. Nada de legado, que não existe mais legado. Não se fazem mais legados num mundo onde a informação corre com o vento, e a cada minuto, em cada esquina, alguém faz história que será vendida pra TV, ou será contada em algum livro barato, ou até mesmo gravada em disco, como música plástica. Ela deixa a música. Exemplo de criatividade, de alma pra sentir, de coração pra sangrar, de voz pra arranhar. Me choca ainda mais a história dela, pois me é contemporânea. Todos os outros do “Clube dos Vinte e Sete” já haviam ido, muito antes de eu conhecê-los. E é como se, mesmo já tendo ido, eu os encontrasse agora, os estivesse conhecendo, como se pra mim estivessem nascendo. Diferente dela, de quem estou, diante de tudo isso, me despedindo. Não é estranho pensar isso? Sim, mas eu sou estranho. Estranho como Hendrix, Morrison, Joplin, ou Johnson. Como Jones, Cobain ou Winehouse. E é também estranho quando penso que tenho vinte e sete anos, e nenhuma vontade de me juntar a eles, a não ser em algum lugar do universo, onde o que nos une é a música. Então, acho que tenho de cumprimenta-los devidamente.

            Olá, Sr. Robert Johnson. Olá, Brian Jones. Olá, Jimi e Janis. Olá, Morrison. Olá, Kurt. E adeus Amy. Sinto decepciona-los, mas ainda estou aqui.


                                                                                                     Thiago Cruz, 29 de Julho, 2011.