sábado, 19 de fevereiro de 2011

Curva de rio

Ela espera na janela, e eu posso vê-la daqui. Parece que mora aqui do lado, e parece que ela também pode me ver. Mas é mentira.
            Quem a olha assim, aérea, com ares de quem não tá nem aí, não percebe porquê ela necessita outros ares. Pois que aqueles já estão muito pesados, já não são mais seus. Nada ali é mais dela. Aquelas ruas tranquilas e frias do seu esconderijo no sul, o carteiro, velho amigo que sempre lhe vinha com mensagens de outras terras, as pessoas que durante todo esse tempo todo sempre lhe pareceram suas, o céu cinza que sempre lhe fora familiar... Nada mais é seu. Nem ela mesma.



            Eu a enxergo daqui, na janela, bem de longe, como quem tá perto. Será que ela me ouve? Porque eu sempre sonho com ela. E, nos meus sonhos, ela me leva pela mão. E me conduz, não com o garbo e a elegância que os outros acham que ela tem. Mas com o garbo e a elegância que eu sei que ela tem. Que só ela tem. Só ela tem aqueles olhinhos miúdos, de quem sempre espera mais de alguma coisa, de quem tem o sentimento do mundo, de quem tem o blues e sua poesia na alma, na pele... E nas mãos, o blues da sua vida lhe escorre por entre as linhas de nascença.
            Só ela tem aquele sorriso sincero. Aquele que poucos, ou quase ninguém, hoje tem. Sorriso que, em questão de um piscar d’olhos, pode mudar para aquela puxadinha no canto da boca, de muxoxo, se algo não lhe agrada. E poucas são as coisas que lhe desagradam. Coisas como falta de personalidade, falta de sinceridade, injustiça, indiferença... Pensando bem, são poucas coisas, mas são coisas muitas! Mas isso é coisa pra outro escrito. Ah, sim! Só ela chama esses meus devaneios de escritos. E diz que adora.
            Acho que ela também me enxerga, lá longe, e conversa comigo a noite, quando não consegue dormir, ou mesmo enquanto dorme. Sei que a escuto. E ela sabe disso. Acho que ela me enxerga, porque só ela sabe que eu, assim como ela própria, sou “gente curva de rio”! Sabe pessoa que só acumula entulho? Em casa, na vida, na alma. E ainda assim, quanto mais se acumula, mais se tem pra acumular, e só se esvaem essas coisas quando, por um desses acasos explosivos do universo, na grandeza da sua indiferença, nos vem uma tempestade daquelas e leva tudo, mas levando também um pouquinho de nós, já embarrancados. E, a essas tantas, segue o fluxo dessa vida-córrego a que nos propomos a deixar levar. Tenho certeza, ela também me enxerga.
            Olha só, essa menina na janela. Eu fico olhando, e como eu queria ter um dedo ou dois de prosa com ela, regados a bons goles de café e quereres. Mas existe longo caminho entre esses mares de montanhas e os mares do sul. Qualquer dia pego o trem e me perco por aí, só pra vê-la de perto, e dizer que eu sempre a enxerguei ali, naquela janela, desenhando com os dedos na vidraça, embaçada pelo bule fumegante de mate no fogão. Desenhando a fumacinha do trem que passava na sua cabeça, usando a fumacinha do vapor como tela para a sua arte irreconhecida. Tão bela, e não inculta, quanto a última flor do Lácio.
            Um dia me perco por aí, e nos encontramos por ali, pra que lá eu possa contar a ela, que sempre a tive bem aqui.
            E ela continua na janela.


Dedicado a pessoa mui amada.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O Beijo de Frida

Tudo o que eu fazia era ficar sentado naquele banco. E Frida Kahlo me desenhava. Na minha nuca, aquele arrepio quente se esboçava, e um calafrio indomável era rabiscado por dentro.
            Não me lembro muito bem dos detalhes de quando ou como nos conhecemos. Mas me lembro de que ela disse que gostaria de me desenhar. Algo assim. Não me lembro muito bem. O estranho é que, pra mim, eu já era um tipo de pintura. Alguma coisa cubista ou, sei lá, impressionista. Sabe, aqueles quadros foscos, desfocados, de um tal de Monê? Pois é. Mas Frida Kahlo disse que gostaria de me desenhar.
            Tivemos o cuidado de marcar o tal encontro em um final de dia de verão, daqueles bem verão, sabe? Bem do jeito que eu não gosto. Eu ia chegar suado, com a terrível sensação de estar com os cabelos desarrumados, e os traços do rosto bem definidos, na minha esbelteza magra. Mas tudo bem. Um cappuccino e uns bons minutos de leitura me fariam relaxar e ter tempo de secar o suor do rosto. Mas ela chegaria logo. Ledo engano. Frida Kahlo queria me desenhar, mas estava atrasada.
            Será que ela não sabia que eu sou apreensivo? Terrível e irremediavelmente apreensivo? Na verdade, isso até que poderia servir de inspiração pra ela. Como? Não sei. Nem sei porque ela queria me desenhar. Eu tenho os traços fortes, sabe? Como os rabiscos fortes de uma criança de três anos de idade. Por isso tanto passar de mãos nos cabelos, pra tentar alinha-los. Talvez parecesse um quadro melhor a ser pintado. Mas minha apreensão acabava ali, ou só aumentaria, não sei. Frida Kahlo acabava de chegar. E em pouco, desarrumava meus cabelos.
            Pronto. Víamo-nos frente a frente, e ela começava a me desenhar, finalmente. Ia me fitando com as palavras, me delineava com olhares e rabiscava no ar o mais belo desenho que se poderia fazer. Um esboço perfeito sobre uma alma imperfeita. Com cores e nuances vivas, sombreada com carvão, pastel sobre tela de linho mal acabada. Era o que eu pensava. Sim, pensava, porque daquele esboço de desenho, de quadro tão perfeito, eu passaria a me enxergar diferente do que enxergava até então. Ou me pareceria, tudo afinal, uma grande ilusão. Será que Frida Kahlo me iludia?
            Se me iludia, não sei. Mas me confundia. Eram tantos traços, tantos rastros, tantos rabiscos traduzidos em palavras e carinhos, em olhares perdidos nos meus, que a paisagem do quadro que pintava me parecia longe, mas de tão longe me parecia tão perto que eu fitava a mim mesmo, sentado naquela cadeira (até então tudo começou numa cadeira de um café, depois viria o banco). Ah, aqueles olhares que se perdiam... Aqueles olhos de Frida. Rastros bem traçados, pontos de fuga, que de mim nada fugiam. Frida Kahlo me olhava, e eu me encantava.
            E encantado seguia pelas ruas daquela Coyoacán da minha ilusão, com Frida ao meu lado, deixando cores e me revelando sabores. Sabores que também, segundo me pareciam, estariam no quadro. Inseridos em mim. Profundamente cravados na sua tela, na minha pele. E assim, Frida Kahlo me perfurava e me coloria.
            Antes de terminar o quadro sobre mim, ela queria uma lembrança de minhas mãos. Claro, todo o quadro que ela faria já seria pungente lembrança. Mas ela queria algo mais, algo em que eu tivesse tocado, onde, nos seus devaneios solitários de insônia, eu deixaria meu cheiro. Então, eu também desenhei. Mas usei caneta esferográfica e rabisquei traços simples, traços que definiam aquele momento, traços que a definiam. Simples e belos. Ela adorou, e me disse ser o desenho mais lindo que já tinha visto. Pelo menos era o mais bonito daquele momento. Entreguei-lhe o papel que já não era virgem, com os rabiscos feitos por mãos já sem prática, e ela se encantava. Então, eu desenhava Frida Kahlo, e Frida Kahlo se encantava.
            Eu fechava os olhos, e os dela me fitavam. Eu sentia o sabor da brisa daquela noite quente de verão, e era ela quem soprava. O meu rosto era pintado naquele surrealismo tão intenso e tranquilo, e eram as mãos dela pincelando. Eu me transportava pra dentro dela, pra tudo que ela tinha em mente, pra dentro daquele quadro lindo que me pintava. E Frida Kahlo me beijava.
             E eu beijava Frida Kahlo.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Versejar

Foi tudo meio de repente. Aconteceu que somos cores, sabores, cheiros e poesia.
               Uma tarde quente, um desejo de tempestade... Café ou cerveja? Sabino e Blake. Um beijo e um abraço.
               Somos música também. E nem chegamos a discordar. As coisas só são diferentes. Quase tudo diferente. Bocas, olhos, mãos... Será que as minhas são boas mesmo pra essa tal de Quiromancia? Será que foi só pra darmos as mãos pela primeira vez? “Você pegou na minha mão, Charlie Brown.” Lembrei desse pequeno episódio, onde o pequeno Charlie toca a mão da Pimentinha. E nem sei porquê isso me atrai tanto.
               Vestido preto, sapatinho bonitinho... Não tanto quanto seus olhos. Essa coisa rara e impressionantemente bonita dos olhos caídos. Olhos que tinham aquela calma distante, um desejo longe de não sei o quê. Olhos que tem aquela cor incrível, que contrasta com a cor dos cabelos, e a maquiagem debaixo deles. Olhos que, acima de tudo, me revelaram, de alguma forma, a alma que me pareceu tão bonita. Janelas da alma. Pontos de fuga, pra mim.
               Olha o livro do Sabino ali em cima da mesa. Folheio alguma coisa. Quase tiro leite das mãos. Sou tímido, não sabia? Ou não se lembrava? Ou não tá nem aí e vai ficar me olhando? Fazê-la rir foi o melhor que pude fazer naquela tarde quente. Primeiro porque aquele sorriso quase me matou. Segundo porque agora não sou eu que estou tímido.
               Eu sempre disse que achava um charme as pessoas desastradas. Mas hoje eu to demais! Precisa quase derrubar a mesa? Por pouco a long neck não cai também. Ah, não falei? Escolhemos Heineken ao invés de café. Será que no fundo o nervosismo era mútuo, a ponto de inconscientemente pedirmos cerveja, pra desinibir um pouquinho? Pode ser, pensando melhor agora. Será que isso quer dizer alguma coisa? Será que você quer me dizer alguma coisa? Será que eu deveria dizer alguma coisa? E, afinal... Será que precisamos dizer alguma coisa? Acho que não. Parece que tudo que eu for dizer, você já vai saber, porque eu vou estar falando de você, e vice-versa. Coisa estranha.
               Bom, vamos tentar... Amarelo! Detesto amarelo! Cor mais sem graça, cor de tédio, cor de hepatite. Não deu certo. Também é a cor que não gosta. Então... Fígado com jiló! Ninguém gosta de fígado com jiló. Ainda mais mulher. Não adiantou, também. Você gosta, e aquele do Mercado Central, ainda. Algumas tentativas e desistimos. É tudo muito parecido, apesar de tão diferentes. Acabo descobrindo o enigma sem querer! Incrível como acontecem essas coisas. Acredita? Ela gosta de Kafka! O Franz, sabe? Aquele, da barata. É, na verdade, acho que sou a única pessoa que não gosta de Kafka. Nem de baratas. E disso você também não gosta.
               Vamos pagar a conta, antes que eu faça alguma besteira, por causa desse seu olhar. Esses olhos caídos, que me atraem tanto. Uma coisa meio Paul McCartney, meio Brigitte Bardot. Fazer alguma besteira... Por quê? Será que você pensa assim? Será que você pensa em mim? Acho que não. Vamos embora, cada um pro seu canto, todo mundo feliz e essa tarde quente pra cacete que não acaba nunca! Mas aí...
               Foi tudo meio de repente. O negócio é que somos cores, sabores, cheiros, poesia... E também somos música.