terça-feira, 2 de agosto de 2011

Galhos Secos

Da série “Velho Velho Oeste”



No alto desta colina aguardo meu destino, que será o que o destino me reservar, incerto e impreciso, longe como minhas lembranças, minha saudade por ela. A eleita de minh’alma, que cruzou o caminho do meu coração e me fez bandido, mesmo tendo sido ela a roubar meu juízo. Ah, minha bela donzela. Fizestes-me calvário onde antes era verde colina. E aqui, no alto dela, aguardo meu destino.

           Atravessei todo o velho deserto desse oeste cáustico, infindo, a procura de não sei o quê, mas sentia que encontraria. O que quer que fosse. Tendo as estrelas como teto e as pedras como travesseiros, quase sem perceber já estava entrando naquele pequeno vilarejo, tão vazio de tudo que parecia uma cidade fantasma. Mais uma, apenas mais uma. Queria somente um lugar pra recostar a cabeça e descansar o espírito, um copo de qualquer coisa forte e um prato de coisa qualquer. Mas, como você sabe amigo, cidades fantasmas, vilarejos assim tão isolados, não são lá tão amigáveis com o que chamam de forasteiros. E comigo não foi diferente. Será sempre o mesmo e velho oeste. Mas disso você já sabe.



            Alguns níqueis ainda me restavam nos bolsos, afinal eu não teria muito com o que gastar pelo deserto. Restava saber se serviriam para alguma coisa por ali, onde havia acabado de chegar. Entrei no primeiro saloon que vi, e foram tantos os olhares e tão pesados, tão ameaçadores, que só tive coragem para dar dois passos atrás, e voltar por onde havia entrado. Fui caminhando pelas sombras das calçadas daquela cidade, silenciosamente, que além de refrescarem o calor escaldante do sol do meio-dia me mantinham quase incógnito.  Cautelosamente adentrei outra taberna e, por ali, o ar ameaçador estava nem um pouco mais leve, o que me fez ficar assim mesmo, pois já estava farto de procurar lugar amigável. Num canto alguns homens jogavam cartas com caras de raros amigos. Alguns bebedores solitários pelo balcão – estranho como esse ar do oeste faz os homens solitários – e o taberneiro. Pelo menos ele parecia um pouco mais camarada. Atravessei todo o saloon fingindo segurança, como se caminhasse por cima de todo aquele ar pesado. Nada precisei dizer, nem pedir.

            - Você parece com sede, garoto - e me estendeu uma caneca cheia, da melhor cerveja que eu havia tomado nos últimos dias, dias em que estive no deserto.

            - Sim, eu pareço.

            Quase de um gole só terminei a caneca e me senti novo. Ele me serviu outra, antes mesmo que eu terminasse a primeira. Talvez se ele soubesse de quanto eu dispunha nos bolsos não fosse assim, tão gentil. Assim como, se eu soubesse o que me esperava naquele lugar, talvez nunca tivesse sequer atravessado o chão quente do deserto, procurando não sei o quê. O que quer que fosse.






            - Não por essas bandas, seu filho de uma que ronca e fuça!

            Ouviu-se um brado pelo salão, seguido de alguns outros, ainda menos gentis. Uma confusão repentina na mesa dos nobres senhores que jogavam cartas. Um não-sei-o-quê Cartas na Manga resolveu provar o porquê de seu nome, mas não contava com a astúcia de um tal Abe Olhos Vivos, ou algo do tipo. E quando já estavam ali, prontos, com as mãos em seus coldres, um estrondo, bem ao meu lado, quase me deixa surdo. Era o taberneiro – qual era mesmo o nome dele? – colocando ordem em sua casa. Retirou de uma gaveta debaixo do balcão a maior escopeta que eu já tinha visto!

            - Pois eu é que o digo, seus cães sarnentos! Não por aqui, não no meu salão! Bebam e dancem, joguem e cantem, mas com respeito! Quem se fizer em contrário vai se ver com a minha Lucy, aqui!

            Percebi que o homem ao meu lado ficou ali, impassível diante do ocorrido. Ou era surdo, ou era o mais destemido dos que eu já havia visto.

            - Pois bem, - bradou novamente o taberneiro - nada aconteceu. Voltem a beber, que a minha cerveja não se transforma em dinheiro sozinha!

            Tudo voltou ao normal por ali, o que quer que normal queira dizer nesta cidade. Continuei a beber minha cerveja, com mais cuidado agora, pois não sabia se alguma atitude poderia ser interpretada diferente. E porque minha vida havia, então, mudado completamente, pouco antes daquilo tudo. Isso é ser um estranho em terra estranha, companheiro. Deixar de ser você mesmo pela aprovação dos outros. Ou pode morrer de alguma coisa, se quiser. De fome ou de amor.

           

            Pouco depois de começar a beber minha segunda caneca naquele balcão sujo, de repente tudo se iluminou. E eu nem sabia ainda como toda aquela luminescência me levaria às trevas em apenas alguns minutos. Levaria-me ao abismo do malfadado amor, abismo que vislumbro agora, de cima dessa colina. Mary Ann. Linda como o florescer da flor de cactos do deserto em noite de lua cheia. Os cabelos dourados, maravilhosamente cuidados, como a crina do mais nobre cavalo. Digo... Égua. Digo... É melhor não dizer nada, e me calar diante de meu destino, incerto, por certo, e em tributo a tão notável beleza.

            Eu nunca havia visto imagem tão bela, tão lindamente esculpida por Deus. Entrou naquele salão e foi como se a noite se fizesse dia. Como se, ao invés de acordar, eu estivesse entrando num sonho, o mais belo dos sonhos. Talvez pela minha fome, que poderia estar me trazendo delírios, talvez por ter estado tanto tempo isolado no cruel deserto do oeste, mas estava diante da eleita de minh’alma, que cruzou o caminho do meu coração e o fez parar.

            O homem ao meu lado, destemido cavalheiro ao que me pareceu, de pronto ordenou ao taberneiro.

            - Uma dose do que a moça for tomar, por minha conta.

            E também de pronto o velho do saloon o alertou sobre o comprometimento da moça, com um tal Jack Fulano de Tal. Não direi que não ouvi a informação – que fez, rapidamente, com que o estranho retirasse a gentileza. Muito destemido, mesmo. Mas foi como se eu não quisesse escutar, tão emaranhado estava àquele raio de sol. Ofereci eu mesmo algo para ela beber, sem nem me preocupar com o que tinha nos bolsos. O velho homem se fez de rogado e lhe entregou um copo com alguma bebida dentro, que nem me interessou saber o que era. De um canto, ela me sorriu de canto, me acenou levemente com a cabeça e suavemente sorveu o que tinha no copo. Parecia esperar alguém, e me vi tentado a acompanha-la em sua mesa.

            - Você não sabe onde está se metendo, rapaz – me disse o velho. Essa beleza não é pro seu bico.

            - Pois é para o bico de quem, senhor?

            - Não se meta onde não é chamado, garoto. Não importa de quem eu esteja falando. Estamos entendidos?

            - Pois lhe digo que não sofre o homem que tenta.

            Quisera eu acreditar realmente nestas palavras. Quisera eu fugir do sofrimento que me aguarda por ter tentado. Mas a cegueira de meu deslumbramento agiu por mim. E estou cá com meu destino, aguardando o fechar das cortinas de minha vida.



            O que se seguiu após essa impensada atitude de minha parte não vem ao caso, senão seu desfecho. Em poucos minutos corria pelo salão um burburinho que dizia, segundo pude ouvir, que Jack Quatro Olhos estava chegando a galope para tirar a limpo aquela história de que sua bela Mary Ann estava sendo importunada por algum forasteiro que dizia ser o mais valente de todo o oeste, desafiando-o a lutar pelo amor da beldade em duelo de armas, ainda à luz daquele dia. Nesse ínterim ocorreu o incidente do jogo de cartas, o que também não vem mais ao caso. Não sei se você sabe, mas um forasteiro nesse tipo de cidade nada mais é que um bandido botas sujas em potencial, mesmo que tudo que digam sobre você seja plena mentira. E, sim... A partir daquele momento toda a cidade estaria nos meus calcanhares, pagando pra ver meu último suspiro. Por sorte, o velho taberneiro me deu cobertura, me fazendo sair pelos fundos de seu honorável saloon. Por azar, eu não fazia ideia de para onde ir. Nem tinha condições de ir a lugar nenhum. Como corisco, atravessei um campo seco de vida e mais que depressa subi a colina que me pareceu mais distante da confusão. Nem notei que, diante do meu cansaço, aquela era, na verdade, a mais próxima do meu martírio.



            Quando já estava no pé da árvore mais seca no topo desta colina, percebi que ainda levava a caneca com algum resquício de cerveja escura. O meu último gole talvez. Nem sei de onde consegui tempo para este relato, pois já ouço vozes e o trotar de cavalos cada vez mais próximo. Lanço um último olhar sobre aquela pequena cidade, como numa benção de adeus, como um brinde ao amor encontrado, já perdido. Ali ficou meu coração. Ali, um pedaço de minha alma. Ali, o último suspiro de maldita paixão. Um último gole. Um brinde ao amor, um gole ao adeus.


                                                                                   Thiago Cruz, 02 de Agosto, 2011





                                                                                           

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