domingo, 10 de julho de 2011

Beira de beco

E eu ando, e continuo andando por essas ruas enlameadas, frias e enfastiadas de tudo que foi durante o dia. Tudo que se foi por ela, em verdade, são como ramos de pétalas de flores jogadas ao vento, ao relento, como estou eu agora, ralentando minha passagem por aqui. Se é que não estancarei por essa esquina mesmo, jorrando lamentações como sangue de ferida aberta.
Canto à rua, numa voz que rasga a noite. Rouca e sem tonia, invento sintonia entre a madrugada e minha dor. Essa voz embargada, barricada de uísque barato, dói nos ouvidos de quem não quer ouvir, e sangra os dos que se encorajam a dar-lhe ouvidos. Sugiro a mim mesmo alguns passos, pra manter o movimento dessa vida estacada, e não noto as poças que piso, e até arrisco sorriso, pois chorar seria como tempestade em poça d’água. A rua parece não acabar, e eu me faço de rogado, jogado ao meu próprio pulsar de vida, que já se vai caída, bandida. E se vai.
Canto à rua e meu canto é como uivo, dolorido, sentido e sem sentido. Mas somente quem uiva sabe dos seus sentidos, seus motivos. Como um velho blues cortante, num instante penso em parar, mas seria como emudecer definitivamente. Tudo que será se define neste pequeno e curto momento, que de curto só tem o tempo imposto pelo relógio. Se eu paro agora de uivar, o que será daqueles que uivam também? Pensariam como eu e, apaticamente, deixariam de fazê-lo, por puro zelo? Zelar a quê, se o zelador de tudo isso deixou isso tudo uma bagunça só? E permite que se limite a vida a pedaços de pão, ou cobertores sujos e encharcados, usados por um, dois ou três, num calor, e isso sim, humano, mundano. E santo.
Uivo por toda a noite e meu uivo é meu lamento, que tento despir a quem quiser, voyeur que seja. Despindo e cuspindo na cara do maldito, do dito pelo não dito, de tudo que tem escrito, sem prudência nem pudor, e que causam essa dor. E como dói nos ouvidos, esse lamento uivo canto. Espero um tanto novamente para voltar a cantar, mas não consigo mais, que lamento não se torna canto, nem o contrário, pois que são um só, como os velhos e derradeiros blues entoados naqueles campos de algodão que vi em algum lugar, algum filme noir. Mas pode ter sido só um livro. E eu me privo de tentar alcançar o coração de quem não quer dar a mão, ou ouvidos, ou o que seja pra que se alimente toda a revolta que se volta contra eles próprios. Mas, eles quem?



Meu lamento pelos becos de beira é, na verdade, meu choro. E como choro. Como pássaro canoro, num canto desaforo, irrito a garganta com esse cantar rouco. Pena que seja somente a garganta. Aquele incômodo que enxergava por aí ao me ouvir chorar lamentar uivar cantar era pura decepção e, portanto, imaginação que me permiti, que nem percebi quando sorri. A lâmpada de um poste se apaga, e uma nuvem fria me afaga com seu escorrer incessante. Giro sobre meus calcanhares e arrisco voltar ao ponto inicial, onde eu simplesmente cantava. Simplesmente.
Meu canto é meu choro.


                                                                               Thiago Cruz, 01 de Julho, 2011