terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Velhos blues

Eu não me lembro exatamente do lugar, agora. Nem porque fomos parar lá. Sei que tocava uns velhos blues, fazendo fundo pra nossa madrugada, alcoólica e esfumaçada. E por isso tenho certeza. Devia ser o melhor lugar do mundo. Ou pelo menos o único aberto àquela hora.
Alguns poucos clientes, mas até que o lugar estava cheio, para aquela hora. Como um refúgio de criaturas escusas dessa cidade que só dorme quando algumas delas vão pra casa - ou seja, nunca -, podia se reconhecer algumas figuras, logo de cara. Uma, duas ou três prostitutas a procura do último osso da noite já falida; músicos voltando da noite de trabalho barato, onde provavelmente tocaram por algumas cervejas tipo B; um grupo de garotos e garotas, jovens demais para estar ali e velhos demais pra estarem em alguma matinê. Tenho dúvidas se era mesmo o melhor lugar pra se estar, ou o único aberto àquela hora. Mas ali estávamos nós.
Pra acompanhar figuras tão ilustres, num momento tão mágico de falência de noite, nada melhor que o melhor uísque da prateleira. No meu caso, o melhor uísque é o mais barato. O resto pede cerveja. Prefiro algo que me mande pra casa sem saber onde estava, ou que me faça querer ficar acordado de uma vez. E por falar nisso, percebo agora no fundo do bar um velho amigo. Deixo ele no canto, e desculpo a mim mesmo pelo desejo. Acendo um cigarro e dou o primeiro trago no uísque - ou o que quer que seja isso -. Ele me acena com a cabeça, e vou pra mesa de sinuca. Deixo ele no canto.
Entre uma jogada e outra fico observando tudo a minha volta, como de costume. Mas não sei se é essa coisa que desce pela minha goela, mas hoje tudo me parece tão bonito. É uma noite quente e, particularmente, essas noites pra mim sempre pareceram muito bonitas, convidativas. As pessoas parecem mais felizes, animadas! Essa falsidade sempre me pareceu muito bonita. Como se deixa algumas coisas de lado, mesmo que por pouco tempo, por um cigarro e alguns momentos de bebedeira. É preciso ser forte pra se enganar tanto. Sério! Fácil mesmo é seguir aquilo que sempre buscamos, aceitar a vida como ela é. Fácil é desistir de algumas coisas por outras. Por outros. Difícil é ter de se esconder atrás de uma parede de mentiras, de enganos, de noites falidas, de copos sujos, de sentimentos falsificados e trocados sinceros. Arranco mais algum dinheiro e pego mais uma dose. Sinceramente.
Perdi a partida de sinuca, e até me alegro com isso. Fico aliviado. Nunca fui de competir. Nunca me coube. Era como se, sempre que entrava em algum tipo de competição, eu entrasse já pra perder. Sempre foi muito mais fácil pra mim, fazer as coisas por mim mesmo. Sozinho com meus pensamentos, meus escassos momentos de genialidade e solidão, tudo ficava mais claro. Eu só tinha que provar as coisas pra mim mesmo. Não para os olhos de todos em cima, esperando por um resultado fantástico. Ou satisfatório. Por que todo mundo necessita competir? Pra quê provar alguma coisa pra alguém? Será que não se pode fazer nada pensando em si próprio? Pensando na própria satisfação? Se eu me satisfizer com uma derrota, qual o problema? Eles têm que controlar o que eu sinto, agora? Pelo menos eu posso desfrutar do meu... O que eu tava tomando mesmo?... Não importa. Acendo mais um cigarro, e tá tudo certo.
               Vou pra um canto do bar, onde está a jukebox, onde está tocando um velho Sonny Boy, e me pergunto onde ele está, e se ele tem feito algo novo. Não que eu saiba. Fico em pé, com meu copo cheio daquela coisa, o cigarro acabando na outra. Até que minha solidão é interrompida por uma bela moça, que só é bela - terei certeza disso pela manhã - por causa da minha embriaguez. Depois de algumas palavras trocadas, descubro que ela me quer. Fico meio incrédulo, e observo meus companheiros rindo de mim, na sinuca. Me fazem gestos, me encorajam. Não preciso de ninguém pra me encorajar a ceder aos desejos de uma moça bonita, mesmo que ela só seja bela nos meus devaneios embriagados. Acendo mais um cigarro, ofereço um a ela e peço mais uma dose. Já nem me importa muito de quê, pela manhã nem saberei onde estive mesmo.
               Mais alguma horas pra amanhecer, e eu aqui, no único lugar aberto da cidade. Ou seja, o melhor. Depois de mais alguma conversa, descubro que a bela moça me quer, mas por alguns trocados. A frustração não chega a me incomodar. Uísques baratos, sentimentos baratos, mulheres baratas e somente esses velhos blues me são tão caros. O que mais eu poderia esperar de noite tão bonita? Finalmente, concordo em sair dali com ela, pra que ela possa me extorquir os últimos pedaços de amor próprio da minha alma. Sem me despedir dos meus companheiros, um leve aceno de cabeça praquele velho amigo, deixo o velho Howlin’ Wolf ditar a trilha sonora da minha saída daquele lugar bonito.
               Estranhamente, ninguém se importa que eu leve embora o copo com uísque, que parece ser o item mais caro daquelas prateleiras todas. O copo, não o uísque. Pergunto a bela moça se iremos pra casa dela ou à minha. Obviamente, ela me leva pra sua casa. Certamente, lá não seremos incomodados. E no fim das contas dessa bonita noite, isso é tudo que me importa. A satisfação da derrota.

2 comentários:

  1. Essa satisfação que escorre pelas paredes imundas do fundo de cada bar fim de noite em que celebramos o mais absoluto despeito pelo que somos quando fora deles.

    Conheço bem.

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  2. Eis que enfim saem à publicação tais belas estórias. Fico feliz, só em saber.

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