sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

“Admira-me como se pode mentir racionalizando.”
                                                                                        Jean-Paul Sartre

Quase noite. É o fim de uma tarde fria. Pessoas vão para suas casas, pessoas saem de suas casas. Algumas não têm casa. Algumas tentam encontrar o significado de “casa”, o mais profundo, ou o mais verdadeiro.  Às vezes é preciso parar...
Ele pára. E fica olhando... Para si mesmo, talvez. A paisagem, crescente e pungente, típica de paisagem urbana, ora. Imaginando, quem sabe, o fundamento de se pensar, considerando, para tanto, o fato de que somos os únicos animais inteligentes, pensantes, racionais... “Racionais...” ele pensa. Isso inclui pensar, antes de agir, no modo como suas próprias ações pesarão sobre nós e os outros. Inclui saber exatamente as conseqüências de determinadas atitudes. Significa entender perfeitamente o porquê de determinadas atitudes.
Ele olha as pessoas.

A convicção do cansaço quase o faz mudar de idéia. Mas ele sabe que as convicções valem aquilo que nós queremos que elas valham. A dúvida entre uma convicção e outra o mantém disperso, e ele continua caminhando. Ele olha as pessoas, mas sente-se sozinho. Sem ninguém ao redor. Assim ele decide se sentar. Segundos depois ele percebe que não é qualquer banco e, sim, o banco no qual ele, pela primeira vez, enxergou a real beleza da vida, num domingo de manhã, o céu azul, um dia lindo. Teve, inclusive, por alguns instantes a certeza de ter descoberto o tão enigmático sentido da vida. Mas, momentos depois, desistiu da apoteótica idéia. Era pequeno demais para tão grande segredo. E nada confiável. Sempre gostou de falar, mais que de ouvir. Como ele (logo ele!) poderia ser detentor de tão grandioso direito? Mas ainda assim de deliciou ao notar que poderia, ao menos, enxergar a beleza da vida e das coisas. E das pessoas.
“Animais!...” ele pensa. Toda a idéia de racionalização vem novamente a sua cabeça. “You gotta be crazy...”. O primeiro verso de uma velha canção lhe vem à tona. Devemos agir por instinto? E, por acaso, seria isso loucura? Se matássemos para comer, por exemplo, seria loucura? Se praticássemos sexo com o único e simples fundamento de procriar, seria loucura? Se morássemos em árvores, e andássemos nus...? Não. Não há mais árvores suficientes para todos nós. “Que pena”.

“Uma coisa é certa...” pensa. “Assim como animais, nós fazemos o que fazemos, o que quer que façamos, não para viver. É para sobreviver.” Ele sorri com a própria conclusão. E pára, pensando não ter sido humilde. “Expectador de mim mesmo”. Sorri novamente. E não pára.
“Sou expectador de mim mesmo, meu próprio público, oras. Sou quem decide se sou ou não engraçado, bom ou ruim, feio ou bonito. Sou eu. Eu me basto.” Dessa vez, para sua própria surpresa, não consegue segurar uma curta gargalhada. É uma pena que não haja ninguém para lhe ouvir pensar, ele pensa.

Ele pensa. Pois neste mesmo instante, a alguns metros dele em outro banco, alguém está sentado. Não fosse pelo óbvio - estar sentado -, poderia passar despercebido por qualquer um. Mas não por você, leitor atento. Tal alguém observa tudo ao redor, como se fizesse importantes considerações acerca de tudo que se passa a sua volta. E faz.
É um demônio. Um de cargo não muito alto, desses que se encontra a todo momento por aí. Adora a noite! Delicia-se ao ouvir as mentes pérfidas das pessoas, que passam sem notá-lo, assim como... Como não notariam um mendigo sujo e mal cheiroso pedindo pão. É isso! Assim fica mais fácil conhecê-las. Estão cansadas, de sacos cheios dos patrões, dos ônibus lotados, do calor insuportável que faz aqui, meu Deus! E como ele gosta da verdade. Nua e crua.
Está lá, já há algum tempo, observando nosso querido personagem. Quase não prestou atenção as outras pessoas, ao ouvir determinadas coisas de sua cabecinha pensante. Ficou especialmente tocado ao ouvi-lo pensar que se basta. “Puxa vida! Não se fazem mais cristãos como antes! Isso é lindo! Mas, será que nem um amigozinho?...” Ele então se levanta, andando na direção daquele por quem, subitamente, se apaixonou.

Como quem encontrou todos os lugares cheios, o funesto demônio senta-se ao lado dele. Mostra-se um pouco inquieto, porém, excessivamente relaxado. Para quem está inquieto, claro.
-Pode me arrumar um cigarro?
-Não fumo. – responde o rapaz, um tanto seco em sua resposta.
-Eu também não devia. – diz o funesto (nome pelo qual o tratarei daqui para frente) demônio, resignado. – Ainda bem que não saio sem minhas balinhas.
Então tira do bolso uma bala de maçã verde - sua preferida -, colocando-a na boca. Nosso amado notívago não deixa dar uma leve risadinha, divertindo-se com a situação.
-Bala?... – pergunta o funesto.
-Não, obrigado.
-Tranqüilo.
Depois de um momento, ele enfim fala.
-E se você se viciar em bala?
-Ah... Sei lá. Nunca pensei nisso.
-Deveria. Hoje em dia até o fato de ser viciado em sexo é considerado doença.
-He... Então, que eu morra, né não?
Os dois se divertem com a bela saída do funesto.
-Mas, não sei... Talvez ser viciado em bala seja melhor, ou menos perigoso que fumar, eu acho. Nunca fui viciado em bala.
-Quanto você fuma por dia?
-Quinze, vinte... Mas não ultimamente. Tô tentando parar, sabe? Não ando mais com maço de cigarros no bolso. Então, sempre que me dá vontade, procuro a pessoa que, pela cara, provavelmente não fume, e peço um cigarro. Geralmente dá certo. Às vezes acho um fumante.
-Sei. E quantas balinhas você tem chupado?
-Ah... Sei lá... Umas doze, quinze... Menos um cigarro, mais uma balinha.
-Pois é. Pensa bem, se você continuar chupando as balas e parar de fumar, existem duas possibilidades. Ou você se tornou um inveterado viciado em balas, ou na verdade você não tenha deixado de ser viciado em cigarro. E se um dia você, por exemplo, não tiver mais balas, ou simplesmente, quiser se livrar do provável vício das balas? Vai fumar um cigarro?
-Bem... Talvez um chiclete, quem sabe?...
O clima entre os dois começa a ficar bom, diferente daquele primeiro momento frio, de humor cortante. Faz frio e a noite torna-se agradável. É sexta-feira.

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