quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O Beijo de Frida

Tudo o que eu fazia era ficar sentado naquele banco. E Frida Kahlo me desenhava. Na minha nuca, aquele arrepio quente se esboçava, e um calafrio indomável era rabiscado por dentro.
            Não me lembro muito bem dos detalhes de quando ou como nos conhecemos. Mas me lembro de que ela disse que gostaria de me desenhar. Algo assim. Não me lembro muito bem. O estranho é que, pra mim, eu já era um tipo de pintura. Alguma coisa cubista ou, sei lá, impressionista. Sabe, aqueles quadros foscos, desfocados, de um tal de Monê? Pois é. Mas Frida Kahlo disse que gostaria de me desenhar.
            Tivemos o cuidado de marcar o tal encontro em um final de dia de verão, daqueles bem verão, sabe? Bem do jeito que eu não gosto. Eu ia chegar suado, com a terrível sensação de estar com os cabelos desarrumados, e os traços do rosto bem definidos, na minha esbelteza magra. Mas tudo bem. Um cappuccino e uns bons minutos de leitura me fariam relaxar e ter tempo de secar o suor do rosto. Mas ela chegaria logo. Ledo engano. Frida Kahlo queria me desenhar, mas estava atrasada.
            Será que ela não sabia que eu sou apreensivo? Terrível e irremediavelmente apreensivo? Na verdade, isso até que poderia servir de inspiração pra ela. Como? Não sei. Nem sei porque ela queria me desenhar. Eu tenho os traços fortes, sabe? Como os rabiscos fortes de uma criança de três anos de idade. Por isso tanto passar de mãos nos cabelos, pra tentar alinha-los. Talvez parecesse um quadro melhor a ser pintado. Mas minha apreensão acabava ali, ou só aumentaria, não sei. Frida Kahlo acabava de chegar. E em pouco, desarrumava meus cabelos.
            Pronto. Víamo-nos frente a frente, e ela começava a me desenhar, finalmente. Ia me fitando com as palavras, me delineava com olhares e rabiscava no ar o mais belo desenho que se poderia fazer. Um esboço perfeito sobre uma alma imperfeita. Com cores e nuances vivas, sombreada com carvão, pastel sobre tela de linho mal acabada. Era o que eu pensava. Sim, pensava, porque daquele esboço de desenho, de quadro tão perfeito, eu passaria a me enxergar diferente do que enxergava até então. Ou me pareceria, tudo afinal, uma grande ilusão. Será que Frida Kahlo me iludia?
            Se me iludia, não sei. Mas me confundia. Eram tantos traços, tantos rastros, tantos rabiscos traduzidos em palavras e carinhos, em olhares perdidos nos meus, que a paisagem do quadro que pintava me parecia longe, mas de tão longe me parecia tão perto que eu fitava a mim mesmo, sentado naquela cadeira (até então tudo começou numa cadeira de um café, depois viria o banco). Ah, aqueles olhares que se perdiam... Aqueles olhos de Frida. Rastros bem traçados, pontos de fuga, que de mim nada fugiam. Frida Kahlo me olhava, e eu me encantava.
            E encantado seguia pelas ruas daquela Coyoacán da minha ilusão, com Frida ao meu lado, deixando cores e me revelando sabores. Sabores que também, segundo me pareciam, estariam no quadro. Inseridos em mim. Profundamente cravados na sua tela, na minha pele. E assim, Frida Kahlo me perfurava e me coloria.
            Antes de terminar o quadro sobre mim, ela queria uma lembrança de minhas mãos. Claro, todo o quadro que ela faria já seria pungente lembrança. Mas ela queria algo mais, algo em que eu tivesse tocado, onde, nos seus devaneios solitários de insônia, eu deixaria meu cheiro. Então, eu também desenhei. Mas usei caneta esferográfica e rabisquei traços simples, traços que definiam aquele momento, traços que a definiam. Simples e belos. Ela adorou, e me disse ser o desenho mais lindo que já tinha visto. Pelo menos era o mais bonito daquele momento. Entreguei-lhe o papel que já não era virgem, com os rabiscos feitos por mãos já sem prática, e ela se encantava. Então, eu desenhava Frida Kahlo, e Frida Kahlo se encantava.
            Eu fechava os olhos, e os dela me fitavam. Eu sentia o sabor da brisa daquela noite quente de verão, e era ela quem soprava. O meu rosto era pintado naquele surrealismo tão intenso e tranquilo, e eram as mãos dela pincelando. Eu me transportava pra dentro dela, pra tudo que ela tinha em mente, pra dentro daquele quadro lindo que me pintava. E Frida Kahlo me beijava.
             E eu beijava Frida Kahlo.

3 comentários:

  1. De todos, entre os mais belos, mergulhei e me sequei no seu sopro de nova vida.

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  2. Amo a Frida Kahlo! Amei esse texto. É você o autor?

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  3. Sim, sou eu o autor.
    Impossível não amar Frida Kahlo.

    Apareça mais vezes. As portas e janelas desse pequeno universo de devaneios e paixões.

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