quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Uísque

Sempre me disseram que a noite é uma criança. Agora estou eu aqui na janela do meu quarto, olhando as coisas lá fora, os carros, as roupas que passam, o copo de uísque na mão, o cigarro aceso na outra. E, definitivamente, a noite não me parece uma criança agora.
Houve um tempo em que se me tocasse o telefone pela madrugada e me convidassem a ir a qualquer lugar que me parecesse razoavelmente divertido, prontamente eu me levantaria, trocaria os sapatos e sairia. Hoje, fico feliz que ele mal toque durante o dia. Tenho estado assim mesmo, só com os meus botões e assim me sinto mais eu, me sinto mais quieto, o que me dá tempo pra pensar, pensar pra agir, agir pra quê? Pra quem? Meus ouvidos parecem tapados, e assim me parece o resto do mundo.
E cá estou eu. Copo na mão, uísque na cabeça, cigarro na boca e nada de bom que me entre pelos ouvidos. Até ligo a televisão, mas logo desisto. A desgraçada me cospe sangue na cara toda vez que tento assisti-la. Há muito tempo já não ouço rádio também. Parece que antes de chegar a minha casa, a frequência das coisas que prestam se perdem no ar. Acho que por serem mais leves, alguma coisa a ver com kilohertz, li sobre o assunto em algum lugar. Juro que li. Secou meu copo. O uísque de hoje em dia é tão leve quanto as músicas boas que se perdem no ar. Poxa, gostei disso. Há muito tempo não gosto de coisas que falo ou penso. Por isso desisti do meu livro. Nada encaixava. Como eu no meio dessa gente. Como eu nesse apartamento. Como eu fora dele. Encho o copo com mais uma boa dose. Se bem que, no caso desta garrafa barata, o termo não se encaixa.
Estou aqui, parado no meu tempo. Uísque na mão, copo na boca, cigarro na cabeça, e meus ouvidos parecem fechados. Mas juro que ouvi alguém chegando a passos rápidos. Mas aí, notei que eles, meus ouvidos, estavam fechados e vi que não era nada. Esperei para baterem à porta para que eles acordassem. Nada. Engraçado como não batem mais à porta como antigamente. Talvez porque existem poucas portas, ou portões demais. Antes de se conquistar o privilégio sacro de bater à porta de alguém, deve-se ligar avisando que irá fazer uma visita, tocar o interfone, se identificar, tocar o botão do elevador, o botão do andar desejado, torcer para que não seja necessário tocar o botão de emergência, descer no andar desejado, tocar a campainha (por que não bater na porta?), e enfim, notar que foi engano. Digo antigamente, mas a minha velhice está na alma, por isso, nem posso afirmar se era moda bater à porta ou palmas. O uísque começa a ficar melhor.
Assim, aqui me mantenho. Cigarro na mão, copo na cabeça, uísque na boca, o ouvido enlameado de tanta asneira dita por aí, promessas, que promessa é dúvida, tantos calares de boca, fechar de olhos, despentear de cabelos, sujar de mãos, circos de horrores, despertares de razão, nascimentos de angústias, negros blues... E lá se vai a noite sob meus pés, sobre suas cabeças, como esse uísque barato – que se tornou ótimo – que agora vos cuspo como minhas palavras, mastigadas, digeridas, ruminadas e cuspidas, vomitadas sobre vossos olhos, sobre essas roupas que traduzem o ser ou não ser de cada um, o pulsar desigual de vossos corações, o correr cada vez mais lento de vossos sangues e vossas vidas! O corroer de suas veias, o inchar de seus pés, o engraxar de seus sapatos a me pisarem o orgulho, a se limparem em meu ego capacho, que me aliena o egoísmo, que me alimenta a falta de pudor, que lhes diz tantas asneiras quanto conseguem engolir, com promessas de ser mais indigesto da próxima vez. Sinto minha cabeça latejar, os olhos em chamas. O uísque até me parece muito bom agora.
E aqui estou eu, com as mãos na cabeça, uísque no ouvido, cigarro no copo, com o rosto virado para a parede, mexendo numa mancha. Parece-me pertinente vê-la ali, agora, e pensar em como uma pequena mancha pode macular uma existência, um ser, uma época, uma era. Mas, se tivesse prestado mais atenção, não me renderia à beleza lírica daquela manchinha, antes veria que minha parede está cheia delas. Manchas de mofo, bolor, marcas de tempo, um dedo, marcas de sapato. Até uns rabiscos a lápis, números de telefone, pequenos versos que me surgiam no meio do nada, em meio a bebedeiras ou pratos sujos. Marcas de mim, em mim.
Quando dizem o tempo todo que você deve esconder seus sentimentos, pôr tudo numa caixa e esquecê-los sob a cama, empoeirando, embolorando seus amores mais preciosos, mofando o que faz parte da sua pele, fica difícil pensar em sair pra ver o sol, sem levá-las pra arejar. Mas o que mais fica difícil mesmo pra mim, é não rir de todos esses palhaços! Mas, como eu poderia continuar tentando. Não posso mesmo vencê-los.
Pois é. Cá estou, agora, com o cigarro no uísque, a boca no copo, o ouvido na porta e a cabeça na mão. Eu poderia... Não, não. Eu deveria continuar falando comigo mesmo, tentando encontrar uma solução em comum, para pessoas comuns, em um mundo incomum. Juro que estava quase lá. Juro! Uma solução para uma civilização perdida, desprovida já de credos e escrúpulos, vinda de um cara bêbado e solitário, no limiar da madrugada de seu quarto vazio, não é algo que deva ser difícil de alcançar. Acho que não. Mas com todas essas manchas, esse chão sujo. Tenho que encontrar uma faxineira amanhã, bem cedo.
Mas uma coisa é certa! Como meu uísque acabou, amanhã mesmo sairei para comprar outra garrafa deste, logo cedo. O melhor que já tomei.

3 comentários:

  1. Belíssimo texto. Abraça as superficialidades da vida com profundidade de quem as sente - e despreza - muito além da epiderme.

    Adoro teus escritos.

    ResponderExcluir
  2. Como fazia tempo que não lia algo tão, bom!!!

    ResponderExcluir